Na rua mais feia da cidade, na sombra cor de ferrugem de um castanheiro das índias, uma velhinha vende figos. Trá-los num alguidar cor-de-rosa forrado com folhas perfumadas de figueira. A velhinha, quieta com o seu alguidar de figos, no ramerrame da rua mais feia da cidade, é uma imagem de inesperada beleza. Provoca a quem por ali passa, a princípio, estranheza, depois, curiosidade, por fim, conforto. Aproximo-me. Espreito para dentro do alguidar. Os figos maduros parecem passarinhos com lágrimas de doçura, escorrendo-lhes do bico. Peço-lhe um quilo e esclareço que não quero figos amassados. A proximidade mostra-me as feições da velhinha. Tem um rosto quadrangular, de nariz largo, bochechas caídas, lábios finos. Devia ser feia em nova. A velhice amaciou-lhe a feiura, a masculinidade dos traços, porém, mantém-se. Tem olhos tristes. Veste uma bata de flores, os pés de dedos encavalitados repousam, inchados, numas sandálias ortopédicas. Começa a tirar os meus figos para um saco. Escolhe-os com vagar, pegando-lhes com mestria, ensaiando com as mãos uma dança de movimentos precisos. As suas mãos parecem as de um mágico. Sabem como se movimentam as mãos dos mágicos, separando os dedos, rodando no vazio, parecendo não tocar os objectos? As mãos da velhinha são assim. Soubesse eu pintar e pintá-la-ia com pinceladas largas de cores intensas.
A velhinha porém não dá conta da sua singularidade e, sobretudo, não percebe a perfeição que o silêncio proporciona. Fala. Queixa-se de três ciganas que descansam ali perto. Olho-as. Também elas aproveitaram a sombra do castanheiro das índias para repousar da sua jornada de mendicidade. A velhinha conta que, desde que ali se instalou, as mulheres ciganas não a largam. Rondam o alguidar dos figos, com olhares gulosos, agitam o copo de plástico, pronunciam sempre as mesmas palavras: fome, filhos, deus. Olham as moedas que guarda no bolso da bata. As ciganas parecem hienas, querem rilhar-lhe os ossos, comer-lhe a carne dura, velha e seca. Escuto-a em silêncio. Contrariada. Não quero saber das ciganas, vestidas de trapos, lenços à cabeça, uma carapaça de sujidade na planta dos pés descalços. Não quero saber das ciganas, manchadas de miséria que arreganham as suas bocas hediondas de dentes podres e carregam crianças de colo que choram a sua solidão. Quero levar para casa apenas a imagem dela, da velhinha com o seu alguidar de figos, perfumando a rua mais feia da cidade.
(Quando, pela tardinha, cheguei a casa, coloquei o saco dos figos em cima da balança. Não por desconfiança. O prato da balança pareceu-me apenas um sítio seguro para proteger os figos do Joaquim que insiste em tocar tudo o que é desconhecido. Foi, então, que percebi que a velhinha dos figos me roubou. Descaradamente, enquanto se queixava das ciganas, das malandras das ciganas, é tudo uma ladroagem, dizia ela, entregou-me apenas oitocentos gramas de figos. Roubou-me a velhinha, a puta da velha.)
A velhinha porém não dá conta da sua singularidade e, sobretudo, não percebe a perfeição que o silêncio proporciona. Fala. Queixa-se de três ciganas que descansam ali perto. Olho-as. Também elas aproveitaram a sombra do castanheiro das índias para repousar da sua jornada de mendicidade. A velhinha conta que, desde que ali se instalou, as mulheres ciganas não a largam. Rondam o alguidar dos figos, com olhares gulosos, agitam o copo de plástico, pronunciam sempre as mesmas palavras: fome, filhos, deus. Olham as moedas que guarda no bolso da bata. As ciganas parecem hienas, querem rilhar-lhe os ossos, comer-lhe a carne dura, velha e seca. Escuto-a em silêncio. Contrariada. Não quero saber das ciganas, vestidas de trapos, lenços à cabeça, uma carapaça de sujidade na planta dos pés descalços. Não quero saber das ciganas, manchadas de miséria que arreganham as suas bocas hediondas de dentes podres e carregam crianças de colo que choram a sua solidão. Quero levar para casa apenas a imagem dela, da velhinha com o seu alguidar de figos, perfumando a rua mais feia da cidade.
(Quando, pela tardinha, cheguei a casa, coloquei o saco dos figos em cima da balança. Não por desconfiança. O prato da balança pareceu-me apenas um sítio seguro para proteger os figos do Joaquim que insiste em tocar tudo o que é desconhecido. Foi, então, que percebi que a velhinha dos figos me roubou. Descaradamente, enquanto se queixava das ciganas, das malandras das ciganas, é tudo uma ladroagem, dizia ela, entregou-me apenas oitocentos gramas de figos. Roubou-me a velhinha, a puta da velha.)