O meu avô materno chamava-se José. Apenas José. Não teve outro nome, apelido, alcunha, diminutivo, até se casar com a minha avó. Só se casou com ela quando a minha mãe veio estudar para a escola de enfermagem. A decência obrigou-o ao casamento. A filha que vinha estudar para Lisboa, resgatando a família da miséria do campo, merecia solidez familiar. A rapariga merecia a respeitabilidade que o casamento sempre traz.
A minha mãe e a tia Dé, lembro-me bem, tratavam-no muitas vezes por paizinho. Era impossível não gostar dele. Era um velho grande e desdentado. Aprendeu a ler sozinho, estudando nos manuais velhos das filhas, à luz pardacenta dos candeeiros de petróleo, exausto depois de um dia de trabalho. Um dia, elas chegaram de Lisboa e foram dar com ele, sentado na mesa da cozinha, junto das bilhas de água, muito concentrado, enchendo cadernos de folhas finas com uma caligrafia perfeita. Trovejava nessa tarde. As gotas, grossas, muito cheias, batiam nas vidraças da cozinha e transformavam-se nas letras cor de chuva que se soltavam do lápis de carvão do meu avô.
Gostava dos netos e nós gostávamos dele. Levava-nos muitas vezes a passear no campo. Se a aldeia já era um espaço único, uma rua inteirinha de casas rasteiras, para brincar em liberdade, cumprimentando as vizinhas, espreitando quintais, o campo aberto provocava em nós uma espécie de êxtase, sem fronteiras, sem limites, infindável como um deserto, misterioso como um labirinto. Atravessávamos a linha dos caminhos-de-ferro que marcava o fim da aldeia (era o fim e não se confundia com o princípio); subíamos ao monte do moinho, a aldeia ficava lá em baixo, muito pequenina, uma mancha indistinta, o depósito da água pairando como um óvni sobre sobreiros e azinheiras; caminhávamos por veredas e caminhos que só o meu avô conhecia, revelando-nos um mundo secreto e imaculado. Mexíamos nas folhas todas, nos bichos todos, cheirávamos cada flor, cada bolota. Foi num desses passeios, um passeio de Outono para apanhar cogumelos, que, sem saber, ao soltar a sua gargalhada desdentada, o meu avô mostrou que a felicidade não precisa de grande sofisticação. De nenhuma.
O meu avô tinha um porte distinto apesar de ser um simples carpinteiro de aldeia. Nunca foi ao cinema, nem ao teatro. Nunca leu um jornal. Entretinha-se a tomar conta da horta e das capoeiras. Gostava de jogar às cartas na taberna. Era um homem amável e bondoso e, do muito que recordo, toda a gente gostava dele. Só a minha avó parecia não o achar merecedor de tanto afecto. Isso incomodava-me. Tratava-o com ressentimento. Era brusca. Biliosa. Faiscava-lhe os olhos pequeninos. Cumpria as suas obrigações conjugais: tratava-lhe da roupa, dava-lhe almoço e jantar, mantinha a casa asseada, o chão encerado, a cozinha limpa, andorinhas de plástico esvoaçando no corredor. Fazia-lhe até migas para o lanche, enrolando num fio de gordura o pão duro, tornando, com paciência, os pedacinhos numa massa homogénea, dourada e perfumada. Tratava do meu avô, é certo, mas era por obrigação, revoltada com qualquer coisa que lhe pesava no corpo e que nunca contou. Atirava-lhe o prato das migas para a frente como se fosse um cão. Ele sentava-se à mesa e comia em silêncio, moendo para dentro, porventura, culpas e remorsos. Eu observava o desdém da minha avó e não encontrava justificações para aquele comportamento. Achava-a medonha, má. Era uma velha, mas parecia um lacrau. Se se olhasse com atenção, e eu olhava-a!, podia-se ver as garras que lhe saiam da boca. Os olhos não enganavam ninguém. Eram olhos de lacrau.
Até que o meu avô morreu. Durante o funeral, reparei que a minha avó o chorou, amparada nos braços da prima Laura, desesperada. Lembro-me de lhe estranhar a reacção. Se não gostava dele, e tudo nela mostrava um ódio latente, reprimido, por que o chorava, por que não sorria de alívio? Durante muito tempo achei que a minha avó só chorou a morte do meu avô por obrigação, encenando dor e tristeza no cortejo fúnebre. Como no resto, como toda a gente, ela limitava-se a cumprir o seu papel de esposa amantíssima, ensaiando os gestos que dela se esperavam.
Depois da morte do meu avô, passou a vestir-se de preto, sapatos, meios, bata, lenço, cada vez se parecendo mais com um insecto gigante. Deixou, contudo, de parecer um lacrau. Parecia uma borboletinha negra, desamparada, frágil, sempre à janela, sempre só. Passou a falar muitas vezes do meu avô. Com saudade. Convenço-me, cada vez mais, da genuidade dos seus sentimentos. Acho que a minha avó só passou a amar o meu avô depois da morte. É muito fácil amar um morto. Um morto nunca nos magoa, nunca nos bate, jamais nos desilude.
A minha mãe e a tia Dé, lembro-me bem, tratavam-no muitas vezes por paizinho. Era impossível não gostar dele. Era um velho grande e desdentado. Aprendeu a ler sozinho, estudando nos manuais velhos das filhas, à luz pardacenta dos candeeiros de petróleo, exausto depois de um dia de trabalho. Um dia, elas chegaram de Lisboa e foram dar com ele, sentado na mesa da cozinha, junto das bilhas de água, muito concentrado, enchendo cadernos de folhas finas com uma caligrafia perfeita. Trovejava nessa tarde. As gotas, grossas, muito cheias, batiam nas vidraças da cozinha e transformavam-se nas letras cor de chuva que se soltavam do lápis de carvão do meu avô.
Gostava dos netos e nós gostávamos dele. Levava-nos muitas vezes a passear no campo. Se a aldeia já era um espaço único, uma rua inteirinha de casas rasteiras, para brincar em liberdade, cumprimentando as vizinhas, espreitando quintais, o campo aberto provocava em nós uma espécie de êxtase, sem fronteiras, sem limites, infindável como um deserto, misterioso como um labirinto. Atravessávamos a linha dos caminhos-de-ferro que marcava o fim da aldeia (era o fim e não se confundia com o princípio); subíamos ao monte do moinho, a aldeia ficava lá em baixo, muito pequenina, uma mancha indistinta, o depósito da água pairando como um óvni sobre sobreiros e azinheiras; caminhávamos por veredas e caminhos que só o meu avô conhecia, revelando-nos um mundo secreto e imaculado. Mexíamos nas folhas todas, nos bichos todos, cheirávamos cada flor, cada bolota. Foi num desses passeios, um passeio de Outono para apanhar cogumelos, que, sem saber, ao soltar a sua gargalhada desdentada, o meu avô mostrou que a felicidade não precisa de grande sofisticação. De nenhuma.
O meu avô tinha um porte distinto apesar de ser um simples carpinteiro de aldeia. Nunca foi ao cinema, nem ao teatro. Nunca leu um jornal. Entretinha-se a tomar conta da horta e das capoeiras. Gostava de jogar às cartas na taberna. Era um homem amável e bondoso e, do muito que recordo, toda a gente gostava dele. Só a minha avó parecia não o achar merecedor de tanto afecto. Isso incomodava-me. Tratava-o com ressentimento. Era brusca. Biliosa. Faiscava-lhe os olhos pequeninos. Cumpria as suas obrigações conjugais: tratava-lhe da roupa, dava-lhe almoço e jantar, mantinha a casa asseada, o chão encerado, a cozinha limpa, andorinhas de plástico esvoaçando no corredor. Fazia-lhe até migas para o lanche, enrolando num fio de gordura o pão duro, tornando, com paciência, os pedacinhos numa massa homogénea, dourada e perfumada. Tratava do meu avô, é certo, mas era por obrigação, revoltada com qualquer coisa que lhe pesava no corpo e que nunca contou. Atirava-lhe o prato das migas para a frente como se fosse um cão. Ele sentava-se à mesa e comia em silêncio, moendo para dentro, porventura, culpas e remorsos. Eu observava o desdém da minha avó e não encontrava justificações para aquele comportamento. Achava-a medonha, má. Era uma velha, mas parecia um lacrau. Se se olhasse com atenção, e eu olhava-a!, podia-se ver as garras que lhe saiam da boca. Os olhos não enganavam ninguém. Eram olhos de lacrau.
Até que o meu avô morreu. Durante o funeral, reparei que a minha avó o chorou, amparada nos braços da prima Laura, desesperada. Lembro-me de lhe estranhar a reacção. Se não gostava dele, e tudo nela mostrava um ódio latente, reprimido, por que o chorava, por que não sorria de alívio? Durante muito tempo achei que a minha avó só chorou a morte do meu avô por obrigação, encenando dor e tristeza no cortejo fúnebre. Como no resto, como toda a gente, ela limitava-se a cumprir o seu papel de esposa amantíssima, ensaiando os gestos que dela se esperavam.
Depois da morte do meu avô, passou a vestir-se de preto, sapatos, meios, bata, lenço, cada vez se parecendo mais com um insecto gigante. Deixou, contudo, de parecer um lacrau. Parecia uma borboletinha negra, desamparada, frágil, sempre à janela, sempre só. Passou a falar muitas vezes do meu avô. Com saudade. Convenço-me, cada vez mais, da genuidade dos seus sentimentos. Acho que a minha avó só passou a amar o meu avô depois da morte. É muito fácil amar um morto. Um morto nunca nos magoa, nunca nos bate, jamais nos desilude.