Por culpa dele torci um pé. Era altura do Natal. Andava eufórica porque, pela primeira vez, os meus pais me tinham autorizado a passar o fim de ano com um grupo de amigos. Uns dias antes, uma amiga oferecera-me uma cassete, preciosa, que ainda hoje guardo. De um lado, gravara várias canções do "Escritor de Canções" do Sérgio Godinho. Do outro lado, gravara outras tantas do "Por este Rio Acima". Ouvi esta cassete vezes sem conta, centenas de vezes, milhares talvez. As canções do Fausto punham-me em estado de euforia. Despertavam em mim uma vontade desenfreada de dançar. Ignorando os olhares trocistas do meu pai e os gritinhos preocupados da tia Dé - ó filha, olha que tu cais! - punha-me a dançar as canções do Fausto, bem no meio da sala, sob o olhar severo das divindades hindus, trazidas pelos meus pais da Índia. Mulheres serpentes. Homens com quatro braços e rosto de elefante. Ganesh, Shiva, Krisna, com os corpos delineados, esculpidos na madeira perfumada do sândalo, olhavam-me com espanto, não reconhecendo aquele dançar tão diferente do das suas terras longínquas. Era um dançar não contido. Não me limitava a abanar a anca ou a mexer os pezinhos. Aquela música entrava dentro de mim e fazia mexer todas as partes do meu corpo. Cheguei mesmo a aprender alguns passos de folclore que se adequavam perfeitamente ao ritmo daquelas canções. Foi num desses devaneios pela dança tradicional, entre saltos e pulos, com os braços no ar, a dar uma pirueta, que torci um pé. Ainda me lembro das gargalhadas da mana, da aflição das minhas mães, do meu pânico perante a iminência de, por causa de uma entorse (mas que entorse!), voltar a passar o fim de ano na companhia dos meus pais com doze passas na mão.
Tenho certo orgulho no episódio da entorse. Assim como tenho um orgulho um bocado parvo em gostar das canções do Fausto como gosto. Não sou capaz de o ouvir sentada numa cadeira como se estivesse a assistir a um recital de piano. Faço sempre figuras tristes nos concertos. Canto as canções aos gritos e danço. Comovo-me com a limpidez da sua voz e com a poesia das suas palavras. Se, no Sérgio Godinho, gosto da capacidade de se adaptar a novos ritmos e a novas sonoridades, no Fausto, gosto precisamente do contrário. As canções de agora podiam ser as canções de ontem. E vice-versa. É por gostar tanto das suas canções que me entristece um país que lhe não reconhece o valor. Dos meus colegas de faculdade, do círculo de amigos de então, muitos deles de esquerda, seja lá o que isso for, nunca conheci nenhum que amasse verdadeiramente o Fausto. Mentira. Havia um: o Rui. Mas o Rui era um caso muito especial. De direita, conservador, precocemente alcoólico, monárquico, excessivo em muita coisa, amava, acima de tudo, acima dos rótulos e das etiquetas, a música, os livros e as palavras. Já os outros, os semi-etilizados que, como eu, deambulavam pelo Bairro Alto, que se deslumbravam com o PSR, diziam gostar do Fausto. No entanto, o único disco que lhe conheciam era o "Por Este Rio Acima". Sim, pá, claro que gosto!”, e bebiam mais uma pinguinha de cerveja para acicatar o ser revolucionário. Um tipo de esquerda sabe que tem meia dúzia de obrigações a cumprir. Uma delas é dizer que gosta do José Mário Branco, do Fausto e do Sérgio Godinho. Gosto do "Navegar, Navegar". Quando diziam isto, tornava-se claro, óbvio, cristalino, que não conheciam a ponta de um corno da discografia do Fausto. O Fausto merecia veneração, devoção, admiração, reconhecimento. Digo mais. Merecia outro país.
(À conta do facebook - que previsivelmente abomino e dispenso - a minha irmã fez chegar este texto antigo ao Fausto. Diz que o leu e sorriu. Meu rico cantor maldito. Viesses tu à minha beira e mimava-te como a um gaiato pequeno.)