Sou filha de um indiano e de uma alentejana, sou irmã de um negro, tenho raízes cruzadas, profundas, fasciculadas. Como já por aqui escrevi, as minhas raízes, fixando-me aqui, neste país, neste lugar, atravessam mares, desertos, cordilheiras, para me alimentar de outras cores, outros sons, outras palavras, imagens muito diferentes. As minhas raízes fazem-me aquilo que sou. Sou mestiça. O que é bom e mau. Estou bem em todo o lado e não estou bem em sítio nenhum. Desde muito cedo, na escola, na família, por causa dessas minhas raízes, arranjei muitas chatices. Os únicos sopapos que levei do meu pai, goês, conservador, foi à conta da urgência de acabar de vez com discriminações que me pareciam intoleráveis. Aos vinte anos, tornei-me dirigente de um movimento anti-racista, participei em reuniões, conheci gente, bebi muitas cervejas. Aos vinte e três cansei-me da luta anti-racista. Larguei o movimento, acabei o curso, casei, passei a engravidar de três em três anos. Os filhos que entretanto tive e o resto deixaram-me pouco tempo para militâncias. A minha única militância, a mais importante, é educar os meus filhos, explicar-lhe o mundo. O racismo, a intolerância, no entanto, são as únicas questões que me fazem despertar da letargia dos quase quarenta e que me fervem o sangue.
E o sangue ferve-me sobretudo quando topo com o paternalismo dos activistas anti-racistas, dos jornalistas politicamente correctos, das abordagens facciosas. Tenho nojo - é mesmo esta a palavra - dessa gente que tudo desculpa, que justifica atitudes, que apaga a responsabilidade individual, a liberdade das decisões. Os negros são todos bons selvagens. A miséria das mulheres ciganas aceita-se em obediência a um determinismo cultural. O ataque à jornalista Lara Logan na praça Tahrir é coisa que se esquece. Não existiu. O racismo profundo dos indianos, tão triste e patético, plasmado todos os dias nas propostas de casamento que aparecem nos jornais indianos, onde engenheiros informáticos pedem noivas clarinhas, quase brancas, de castas compatíveis, também se esquece. Não é racismo. É uma herança milenar. Entre um admirador confesso do Le Pen e da sua filha e um activista anti-racista, quase que prefiro o primeiro. O primeiro é racista e assume-o. Posso abertamente contestá-lo. O segundo, sendo racista, tendo entranhado no corpo a forma mais abjecta de racismo, esse paternalismo que faz lembrar a caridadezinha cristã, está convencido de que não o é. Dá muito mais trabalho contestar um activista anti-racista do que um racista.