Li o relatório
várias vezes, satisfeita com o resultado final. Gosto de redigir ofícios,
contestações, pareceres, dá-me prazer apurar essa escrita glaciar, objectiva,
sem desperdícios, mas formalmente inspirada. Ao final do dia, corri à chuva,
procurei subidas íngremes, pisei poças de água e lama. Corro porque preciso cansar o corpo, é a única forma de o sentir vivo. Na volta passei
pelo minimercado, comprei broa branca, dióspiros, também morangos a um euro o
quilo. Fui buscar o Joaquim a casa dos meus pais, beijei o cabelo oleoso da tia
Dé, abracei muito a minha mãe, o meu pai pediu-me cuidado com as corridas
tardias. Já em casa, enquanto escolhia alguns livros para o R. levar para
Dunquerque, encontrei A Aldeia de Stepantchikovo e
os Seus Habitantes, o livro mais divertido que li em toda a minha vida. Levei-o para o quarto e deixei-o em cima
da mesinha de cabeceira. Lavei os morangos, arranquei-lhes o pezinho,
enchi quatro grandes taças, polvilhei-as com açúcar e um salpico de água de
rosas tal qual aprendi a fazer num programa de culinária inglês. Os meus filhos espantaram-se quando me viram chegar com as taças dos morangos.
É o nosso jantar, expliquei. O mais pequeno bateu palmas e, com a sua
voz de corneta, exclamou: és a melhor mãezinha do mundo. O amor num sufixo. Já os
deitei, beijei, escutei cada um falar do seu dia. Também já tomei a fluoxetina
e o comprimido cor-de-rosa para dormir. Terei uma noite branca, lisa, sem
sonhos. É isto um bom dia: eu, livre de calamitosos delírios, aceitando a
vida em toda a sua bela tranquilidade, não querendo, não esperando
absolutamente mais nada.