Tento ignorar
as mulheres com o útero já descaído, concentro-me no livro que o Luís me
emprestou pouco antes de morrer. Mal entro no gabinete percebo que a médica
está tensa. Acelerada, masca uma pastilha elástica e, de tanto o morder, tem o
canto do lábio superior cheio de sangue pisado. Sem sorrir, sem me olhar,
manda-me despir. Abre-me as pernas e, bruscamente, enfia uma sonda vaginal. Que sorte!, explica enquanto olha o
monitor, está limpinha, não precisa de
fazer nenhuma raspagem. Despede-se dizendo que daqui a um mês posso voltar
a engravidar. Saio do gabinete e volto a sentar-me na sala de espera. Não sinto
tristeza, apenas humilhação. Sei que o meu corpo não presta, vive deslassado do
resto, mas, para o suportar, sempre me agarrei à evidência da sua outra eficácia.
Não chego a ser mulher, sou apenas uma fêmea, um útero, uma máquina. É assim que me vejo. É assim que os outros me vêem. Engravidei
quando quis. Tive gravidezes calmas, trabalhei até à véspera do dia do parto.
Gerei crianças sadias, grandes, espertas, risonhas e muito bonitas. Toda a
gente mas gaba. Para mim era tão certo o nascimento deste filho que imaginei as
suas feições, a cor do cabelo, o recorte das mãos. Também pensei em nomes: Ana
ou Álvaro. Aproveitei até os saldos de verão para comprar roupa de grávida,
duas camisolas, uma preta, outra vermelha, um vestido estampado. Tudo muito
justinho e confortável como se quer numa grávida moderna.
Não percebo o
que correu mal desta vez. Aconteceu no domingo. O mais novo, sentado no chão,
entretinha-se com um puzzle. Preparava-me para lhe explicar que várias peças
estavam mal encaixadas quando senti uma cólica violenta. Deixei-o e corri à
casa de banho. Sentei-me na sanita e imediatamente escorreu um coágulo escuro,
morno, do tamanho de uma uva. Soube naquele instante que dentro daquele saco
estava um minúsculo lagarto arroxeado, morto, de mãos de dedos
membranosos, cauda embrionária. Fiquei sem saber o que fazer. Descreio do
aborto como forma de emancipação feminina e muitas vezes penso no destino
desses embriões e fetos expulsos antes do tempo. Que lhes acontece? Devem ser
metidos em grandes sacos de lixo pretos juntamente com rins, massas tumefactas,
mucos, quistos, secreções, escarros, ossos, restos de pele. A possibilidade
desses pequenos monstros serem indistintamente incinerados em fornos de altas temperaturas
impressiona-me. Faz-me muita confusão. Deixei-me ali estar, de pé, a olhar o
coágulo na sanita, sem conseguir descarregar o autoclismo.
Agora, estou
aqui, nesta sala de espera, limpinha, bem limpinha, como explicou a médica dos lábios
trilhados, sem precisar de fazer uma raspagem. Que faço às duas camisolas? Ao vestido
estampado que comprei nos saldos? Aos nomes que escolhi para o pequeno lagarto
assexuado? Ao rosto redondo que lhe imaginei?