Chove. A viúva mantém-se imperturbável, rosto sem lágrimas,
o corpo rijo como se fosse feito de pedra. Essa imobilidade, que soa um pouco a
afectação, apenas é quebrada pelos puxões que dá ao filho. Presa pela mão, com
uma lagarta de ranho a escorrer do nariz, a criança insiste em querer subir ao
monte de terra que cobrirá o caixão. Familiares e amigos mantêm-se silenciosos,
hirtos, o mesmo semblante inexpressivo, a mesma serenidade. Só uma velhinha,
que mastiga o vazio, soluça abertamente. Quando o coveiro começa a largar
pazadas de terra sobre o caixão, talvez incomodada pela contenção geral,
leva as mãos ao peito e exclama “coitadinho do meu vizinho!”. A viúva não
desvia o olhar, não se mexe. Dá apenas um novo puxão ao filho. O menino sorve o
ranho e choraminga.
O coveiro vai compondo desajeitadamente as coroas de flores.
Recordo o morto. Namorámos durante algum tempo, pouco depois do meu divórcio. Um
homem amável, de conversa fácil, incapaz, porém, de partilhar um pensamento
íntimo. Só uma vez, num dia igual ao de hoje, escuro, denso, chuvoso, me
revelou o seu mundo interior. Descíamos a Rua da Madalena em direcção à Baixa
quando parou a olhar uma varanda de vasos floridos. Como se fosse a coisa mais
natural do mundo, explicou que a morte não o assustava. O que o assustava era a
morte depois da morte, o esquecimento dos outros, sofria com a
possibilidade de ninguém recordar os seus gestos, o tom da sua voz, os principais
traços do seu carácter, sobretudo, as suas opiniões. Contou ainda que o pai morrera novo e a lembrança da mãe ajeitando as jarras da campa com flores frescas, beijando o nome incrustado na lápide, era a mais bela que guardava da infância. Como
que surpreendido com a sua confissão, ficou por instantes em silêncio, depois continuou a caminhar.
Esqueço essa estranha conversa. Volto a fixar o vulto da
viúva. Conheço-a vagamente. É bonita, inteligente, emancipada. Imagino que, ao
contrário de mim, não encontre satisfação na simples ostentação do seu corpo.
Tenho a certeza de que não voltará a entrar no cemitério. Cuidar dos mortos
deve parecer-lhe uma mania de gente ignorante, uma tradição obsoleta, até estúpida.
A ideia da campa degradando-se lentamente, enchendo-se de estrelas de bolor
preto, entristece-me. Uma rajada de vento forte desequilibra-me e faz-me pisar
uma poça de lama. Enquanto raspo o salto do sapato ao bordo de um aviso
camarário, tomo uma decisão: não pude cuidar do João vivo, cuidarei dele
morto.