2015/06/30

À fresquinha

Fui à pastelaria comprar um palmier coberto. Sentei-me cá fora, no muro do hotel Barcelona, à fresquinha, a comê-lo. O grande leopardo vermelho do reclamo luminoso olhou-me com os seus olhos coruscantes. Passaram pessoas à minha frente. Passaram também táxis, camionetas, autopullmans cheios de turistas. Passou o cão coxo e passou o poeta. Ao vê-los passar, nem sei bem por quê, tentei recordar o poema preferido do João. Não consegui. Só sei que fala de amor, de uma pedra e de uma faca. A minha vida começa a ser apenas esquecimento. Penso nisso, no esquecimento, assusto-me e não sossego. Tentei então recordar o grito abafado do João quando certa vez lhe fiz uma mamada na casa de banho da Biblioteca Nacional. A minha memória não é sensível à poesia, nem ao amor, mas é perita em guardar o que é sórdido, vulgar, ordinário. Foi um esforço em vão. Deu-me vontade de chorar. Desfiz-me em lágrimas, ali no muro do hotel Barcelona, sentada à fresquinha enquanto comia um palmier coberto. Chorei durante muito tempo. As lágrimas escorreram e formaram um grande lago no cruzamento da Avenida de Berna com a  5 de Outubro. Felizmente, o grande leopardo vermelho, aturdido com o meu choro, saltou do reclamo luminoso. Lambeu docemente a minha cara e, depois de lançar um extraordinário rugido, engoliu-me. É um bicho bondoso.