2015/10/23

Fogo azul

Falavam sobre o Piketty, sobre os pré-rafaelitas, sobre o espólio do Eduardo Lourenço. Eram capazes de falar sobre esses temas durante muito tempo, num tom natural, nada forçado, mostrando interesse autêntico em tais assuntos.  Enquanto ouvia aquelas pessoas falar - investigadores, professores universitários, doutorandos, pós-doutorandos -, experimentava alegria, exaltação, deslumbramento, também algum desconforto. Apesar do esforço, muitas vezes, não era capaz de acompanhar as conversas, desconhecia factos, sentia-me perdida perante os autores e livros referidos. Quase sempre, por isso, para não mostrar o meu desconhecimento, remetia-me a um silêncio prudente.

Mas um dia a minha ignorância libertou-se e revelou a sua triste dimensão. Passados alguns anos, se penso nesse episódio, ainda sinto o peito apertado. Almoçávamos no refeitório da biblioteca: eu, o João e um amigo do João, um professor universitário. Esse professor tinha um estatuto diferente no grupo que habitualmente frequentava o refeitório da Biblioteca Nacional. Pela sua carreira académica, pelos artigos escritos em jornais e revistas, era tratado com deferência por todos os outros: calavam-se para o ouvir e raramente o contrariavam. Nesse dia, o João e o amigo entretinham-se com as conversas do costume; eu, como sempre, escutava-os em silêncio e sentia um amor profundo pelo meu namorado. A certa altura, já não sei a que propósito, um deles mencionou que no tempo da ditadura era necessário ter uma licença para usar um isqueiro. A exigência, de tão absurda, pareceu-me brincadeira. Duvidei do que diziam e devo tê-lo feito com espanto genuíno. Não podia ser verdade. Era, asseguravam que era, diziam e insistiam, arregalando os olhos. Por fim, depois de muita birra, pouco convencida, anui. A conversa avançou para outros temas. Até que o João cruzou o olhar com o amigo e os dois começaram a rir. Não conseguiam parar de rir. O assunto de que falavam não se prestava a risos. Percebi nesse instante que se riam de mim.

Senti vergonha, muita vergonha, não só de não saber que durante o Estado Novo era necessário ter uma licença para usar um isqueiro, mas de tudo o que sou, das minhas raízes, dos meus pais, do bairro suburbano onde cresci, dos vestidinhos comprados nos saldos da Zara, do meu esforço para parecer uma mulher que não sou. Senti sobretudo vergonha do meu desejo de pertencer  a um mundo de saber, conhecimento, cultura, habitado por homens e mulheres que liam os livros certos, escutavam os discos certos, sabiam falar dos filmes certos. Odiei o João naquele instante, odiei-o bastante, senti por ele um ódio primitivo, um ódio capaz de um gesto imprevisto. Voltei a sentir ódio igual poucos dias depois, na última noite que passámos juntos. Já na cama, depois de observar atentamente a lombada dos livros pousados na mesa-de-cabeceira, fui para o beijar, para o abraçar e ele, sem uma palavra, afastou o rosto e virou-se para o lado. Na manhã seguinte, recordo-o, levantei-me muito cedo, vesti-me e saí em silêncio. Sentei-me na entrada do prédio a chorar. Sem me tocar, o homem que eu amava fora capaz de me fazer sentir suja, impura, desprezível. Exactamente como me sentia quando o meu marido me possuía sem cuidar da minha vontade. Acho que se, naquela manhã, tivesse um isqueiro à mão, o tal isqueiro para o qual entretanto aprendera ser necessário ter uma licença, antes de sair do apartamento, teria feito uma pilha com os livros de sociologia e, sem hesitação, teria ateado um lindo fogo azul.