2015/10/01

Três vértebras

Em breve esquecerei o rosto de Santo Estevão e tudo o que li sobre “O enterro do Senhor de Orgaz”. É sempre assim. O último quadro que procurei estudar com alguma profundidade foi “A Ronda da noite”. Fi-lo para perceber o livro da Agustina Bessa-Luís. Que sei ainda sobre essa obra? Sei que foi uma encomenda dos arcabuzeiros de Amesterdão, sei que há quem diga que a estranha criança, vestida de branco, é Saskia (?), a mulher do pintor entretanto falecida, sei que alguém leva um frango à cintura e que isso tem um qualquer significado, sei que o quadro originariamente teve outro nome, não me recordo qual,  sei que lhe chamam “A Ronda da noite” apesar de não representar uma cena nocturna, sei que a tela original, gigante, teve de ser cortada porque não cabia na parede onde os arcabuzeiros a queriam colocar. Sei afinal muitas coisas sobre o extraordinário quadro de Rembrandt. Talvez a minha memória esteja finalmente disciplinada e, aos poucos, comece a reter o que é importante. Tenho pena de esquecer o que leio com interesse e entusiasmo. Alguma coisa fica, claro, quase sempre o pormenor estranho, insólito, que, à primeira vista, me parece irrelevante. Desde as aulas de filosofia, quando li alguns textos de “A Câmara Clara”, que sei que tudo o que vejo, escuto, leio tem um puctum, um pormenor que me atrai e não esqueço. Daqui a uns anos, por muito disciplinada que a minha memória se torne, pouco recordarei do que li ontem sobre o quadro de El Greco, mas lembrar-me-ei quase de certeza das três vértebras da grande odalisca de Ingres (no artigo referiam-se as 36 vértebras da odalisca como exemplo dos truques e artifícios que os pintores usam para atingir determinado efeito). Espanta a odalisca de Ingres, não só pelo olhar distante, sobranceiro, pela nudez muito branca, mas sobretudo pelo comprimento das suas costas. Parecem não ter fim. Ingres pintou uma mulher com três vértebras a mais. É o que se diz. É o que dizem os entendidos em pintura e anatomia. É o que vinha no jornal de ontem no artigo escrito por aquela rapariga que foi colega de curso da minha irmã. As três vértebras são o puctum do artigo que ontem li. É quase meia noite. Não tarda nada, ouvirei os sinos da igreja de Nossa Senhora de Fátima. 

(Não é fácil escrever com um gato que insiste em passear a sua felina elegância por cima do teclado do computador.)