2015/10/15

Quinta da Fonte

Nas encostas da serra, entre o casario clandestino, há quintas abandonadas, cumeadas floridas, oliveiras, figueiras, pinheiros, ribeiros de águas profundas, rebanhos de cabras apascentados por raparigas de cabelo comprido. O bairro, vários blocos de apartamentos pintados de amarelo, surge depois da última curva de Camarate. A primeira visão do bairro, imponente e desoladora, impressiona-me sempre muito.

Mal saio do carro, trémula de excitação, respiro fundo. Dora estende uma toalha de quadrados vermelhos no pequeno jardim da praceta principal. Com cuidado, distribuí por pratinhos de papel o que vai tirando do cesto: empadas de galinha, pastéis de massa tenra, triângulos de pão de forma barrados com pasta de sardinha, fatias húmidas de bolo de laranja. Do cesto de verga, herdado de uma tia holandesa, tira também fruta, uma garrafa com limonada e dois copos de vidro fosco que reserva para essas ocasiões. Olho em redor e rapidamente, muito rapidamente, entro num êxtase inexplicável. Há tanto para ver no bairro! Velhas debruçadas à janela. Estendais vergados pelo peso de colchas e toalhas turcas. Homens, encostados a muros, mudos, quedos, sem nada para dizer uns aos outros. Ciganos de um lado, cabo-verdianos de outro. De vez em quando, a porta do templo adventista abre-se e, aos pares, saem mulheres de bíblias nas mãos. As poucas lojas que existem no bairro têm grades nas janelas e nas portas. Escutam-se constantemente gritos magníficos. De tão absorvida pela vida do bairro sou ingrata para Dora. Mastigo os pastelinhos que, com tanto esmero, ela prepara na véspera sem lhes sentir o sabor.

 “Ana, não estão bons os rissóis que fiz com as sobras do rolo de carne?”, perguntou-me num certo domingo de sol brando. Olhei-a um pouco atrapalhada. A visão dos seus cabelos louros, longos, caídos sobre as costas, naquele instante, fez-me crer na existência de bosques encantados onde as árvores falam aos pássaros e, no lento desabrochar das flores, se apaga todo o terror, toda a dúvida, todo o cansaço do mundo. Puxei-a para perto de mim. Abracei-a. Senti o seu cheiro, a temperatura do seu corpo, os pequenos seios subitamente firmes por baixo da linda blusa azul que lhe ofereci quando fez trinta e oito anos. “És uma mulher extraordinária. Para além de saberes fazer rissóis de carne, gostas do que é belo.”, soprei-lhe ao ouvido. Dora reclinou a cabeça e esperou que a beijasse.