A semana passada, no
alfarrabista da Elias Garcia, encontrei vários exemplares da revista Almanaque.
Actualmente, com excepção de algumas pequenas editoras, da Antígona e da
Relógio D`Água, no geral, fazem-se livros feios, vulgares, de
dimensões pantagruélicas. Até os livros da Tinta da China, que tanta gente
aprecia, me parecem todos iguais, repetitivos, grafia aborrecida e previsível.
Um leitor se quer lavar as vistas tem mesmo que se virar para a edição antiga.
Aí encontrará livros luminosos e sóbrios, com capas do Paulo Guilherme,
do António Garcia, do Sebastião Rodrigues ou do João Câmara Leme. A
revista Almanaque, para além da coordenação do José Cardoso Pires, teve como
responsável gráfico o Sebastião Rodrigues. São revistas únicas. Mal
as vi, perfiladas na segunda estante do novo alfarrabista, desejei que fossem minhas.
Porém, quando perguntei à mocinha pelo preço, para minha surpresa, ela largou o
que estava a fazer e foi inesperadamente teatral na resposta que deu. Saiu
detrás do balcão, ensaiou um passo de dança e, de um salto, montou-se no alazão
de crina dourada que está no meio da loja. Lá de cima, devidamente
escarrapachada no lombo do bicho, explicou-me, com um esganiço de voz, que só
vendiam as revistas por atacado. Duzentos e cinquenta euros pelo conjunto dos
dezoito exemplares publicados. Engoli em seco. Suspirei. Saí. Tive pena de
não ser rica como o meu vizinho Duarte que é militante socialista e tem um
lindo Porshe Carrera. Desde então não penso noutra coisa.
Imagino-me sentada na cama, com dois pacotes de Filipinos, as revistas espalhadas na colcha de floreados que comprei no Ikea. Deleito-me com a
possibilidade de bisbilhotar à vontade cada exemplar, atentar aos
detalhes gráficos, ler os contos, divertir-me com os artigos de floricultura e com as
críticas gastronómicas. Depois de muito pensar no assunto, percebo que só me resta
uma solução: pôr-me à venda. Toda a gente tem um preço e eu tenho o meu. Pelas
revistas, janto, converso, gargalho, molho os lábios num branco muito
fresquinho. Respostas, sff, ao mail anexo a este berloque.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2014/04/29
Rua dos Fanqueiros
Salão
da Academia Recreio Artístico, ali na Rua dos Fanqueiros, onde geralmente anoitece mais
cedo. Os tectos do salão, de estuque trabalhado, estão pintados de amarelo
clarinho, o soalho de madeira range, mas a música silencia esse ruído. O ar abafado dá uma febril sufocação aos
corpos dos bailarinos. Na parede central, o retrato de um tal António Pedro. De
expressão mansa e bigodes retorcidos, parece vigiar a aula de dança. Duas
mulheres dançam ao som dos tangos do Carlos Gardel. São um par. Dois corpos cingidos em assumido êxtase sensual. E o dimorfismo que se lixe. Dançam com
paixão e entrega. Os seus passos são seguros,
marcam bem o ritmo, mostram domínio, técnica, mas também uma excessiva aceleração
que merece a atenção da professora. “Lento, mais lento”, vai-lhes dizendo num português cheio de variações. A mulher mais nova é bela e dança
de olhos fechados. Deixa-se levar pela companheira. Os seus cabelos compridos, que
balançam de lá para cá, suscitam-me pensamentos vagos de felicidade.
2014/04/10
2014/04/06
Baltazar Borda d' Água
Cumpridor e reservado, fato escuro assertoado de quatro
botões, camisa impecavelmente engomada, gravatas discretas, sapatos pretos
pespontados, verdadeira imagem de sobriedade. Senhor gerente isto, senhor
gerente aquilo, senhor gerente, estão a pedir-nos a média diária de captação de
depósitos a prazo do mês de Julho, e, amanhã, não se esqueça, vem cá o sócio do
presidente da junta tratar do empréstimo para o prédio que querem construir no
Prior Velho. Baltazar Borda d’Água sempre correcto, ajudando cada empregado
novo que chegava, paciente na arte de ensinar, realizando estornos,
esclarecendo dúvidas sobre saldos e extractos, explicando planos de
investimento e taxas, aconselhando prudência nos investimentos e recato nos
créditos, sugerindo, sem paternalismo, mas sincera preocupação, planos de
poupança às famílias de Sacavém. O primeiro a chegar e o último a sair, trinta
e seis anos de serviço e nunca se soube de desvios ou enganos. Sempre declinou com educação os convites para almoços que a
clientela da agência, pequenos investidores, lojistas, comerciantes por
atacado, revendedores de maquinaria pesada, proprietários de stands de
automóveis, construtores civis, lhe fazia. Gostava de almoçaradas, mas sabia
que aqueles convites traziam água no bico, eram feitos com o propósito de
tornar ligeiras as negociatas, dois ou três almoços, bem comidos, bem regados
e, a seguir, chegaria o desafio para gozar a penumbra nativa nos bares polinésios
da Praça do Chile e, se o atrevimento fosse muito, ir ver as raparigas do Cais
do Sodré. Depois, assumida a amizade, haveriam de chegar convites para os
casamentos dos filhos e baptizados dos netos. Apesar da urgente necessidade de
fidelização dos clientes, Baltazar Borda d’Água sabia que, como gerente
bancário, tinha de ser firme, não podia ceder perante esse assédio. Quando se
desse conta, já não conseguiria avaliar com imparcialidade os pedidos de
empréstimo, havia de afrouxar na negociação da taxa de juro, alijar no número
de prestações; a sua liberdade negocial seria aturdida pelos camarões comidos
gulosamente nos copos de água e pela lembrança das inocentes cabecinhas dos
netos dos construtores civis, debruçados sobre a pia baptismal, berrando da
frieza dos óleos santos, mas livres do pecado original.
Quando Baltazar Borda d’Água se reformou os colegas da agência fizeram-lhe uma festa na Churrasqueira
Brasil. Os rodízios eram novidade e os bancários de Sacavém andavam com vontade
de experimentar a fartura das carnes vermelhas, o delicioso desperdício dos
bufetes livres, o aparato dos empregados vestidos de gaúcho, bombachas dentro
das botas caneleiras, camisa larga, faixa vermelha, espeto nas mãos com nacadas
de carne escorrendo gordura. Encontraram na reforma do chefe uma boa razão para
lá ir. A ementa era um luxo, picanha, maminha, cupim, coxão. Também serviram
corações de galinha barrados com manteiga de alho, petisco apreciado sobretudo
pelas senhoras. Uma colega nova, vinda da agência de Mem Martins, pôs-se mesmo
a trincar os pequenos músculos galináceos com um gozo excessivo:
- Ai, que delícia…- dizia a mem-martinense, não se dando
conta de que comer corações com tamanho prazer, ainda que seja de bicheza
pequena, desconcerta, faz lembrar feitiçaria medieval, canibalismo primitivo,
macumbas africanas para curar infidelidades, tanglomanglos em geral, enfim, é
um gesto de gula adequado apenas às mulheres que não conseguem disfarçar um
desejo voraz de prazer.
Os acompanhamentos eram à discrição, saladas variadas, arroz
branco, batatas fritas e feijão guisado, à sobremesa, o que se quisesse,
bavaroises aveludadas, gelatinas, pudins de coco, um pão-de-ló de alfeizerão
solitário, para quebrar a brasileirice da ementa, fruta fresca, abacaxi, mamão
e manga fatiados. Houve quem repetisse cinco vezes. No final, grogues da doçura
inocente das caipirinhas, fivela do cinto desapertada, os subordinados gabaram
a liderança e capacidade de organização de Baltazar Borda d’Água. Fizeram-se
discursos emotivos, houve até quem lacrimejasse ao lembrar histórias antigas.
Ofereceram-lhe uma caneta de aparo de aço e o banco mandou, como era
procedimento habitual na reforma das chefias intermédias, uma placa de
reconhecimento, em prata de lei, cinzelada. Trabalho fino, muito discreto.
2014/04/04
Folha
No verso da folha escrevi “O segundo amor da vida de Aninhas, um professor de sociologia, bem-parecido e alegre, morreu subitamente duma queda aparatosa que deu na casa de banho da universidade enquanto se masturbava a pensar numa aluna com uma sombra pronunciada de buço, mas peituda e de modos emputecidos”. Fiquei a olhar para a folha e pensei nas três palavras que recentemente aprendi. Nastúrcios, hidrângeas, pervincas. Pensei também na frase que li ontem à noite:“Camilo gostava das pessoas que choram”.
2014/04/03
2014/04/01
Serão
Outras vezes, era apenas para se
livrar da modorra dos serões que o fazia, estava para ali sentado sem fazer
nada, inerte, em frente do televisor, escutando a mãe contar a sua rotina, os
conciliábulos com as amigas, a alcovitice com as peixeiras no mercado, as
pequenas arrelias domésticas com Fátima, a empregada. A mãe fora buscá-la a um
refúgio de meninas, trouxera-a ainda nova, lisinha como uma tábua, livrara-a de
uma existência de abandono, a rapariga fora-lhe grata a vida inteira, movia-se
como uma sombra silenciosa e muda; à noite, depois de arrumar a cozinha, metia-se
no quartinho ao lado da cozinha a rezar o terço e a ler fotonovelas. Mas perdera a cabeça quando
começara a namorar com um tipógrafo sindicalista. Desleixava-se amiúde no
cumprimento das tarefas, não puxava o brilho dos móveis em condições, usava até
pequenas manigâncias para imprimir brandura no trabalho, ia buscar o aspirador
por tudo e por nada, introduzira esfregonas e cabos extensíveis para a limpeza
dos vidros, passara a apurar os refogados com caldos maggi. Quando o namoro com
o tipógrafo pegou de vez, Fátima começou com umas conversas atrevidas sobre
aumentos de ordenado e descanso semanal. A mãe achava-a ingrata, mas
intimamente parecia agradecer a afronta reivindicativa: tinha assim
oportunidade de soltar o azedume. Carlos escutava-a:
- Ó mãezinha, tenha calma, que a
Fátima é boa rapariga!- ia dizendo para a sossegar.
Quando chegava a um ponto de
saturação - geralmente quando a mãe perdia a compostura e, mexendo no colar de
pérolas, lhe chamava porca, devassa, ai coitadinha, anda mesmo apanhada por
aquele comunista nojento! -, levantava-se com a desculpa de ter de ir à casa de
banho. Fechava a porta à chave e abria o resguardo do poliban. Recorria então a um
imaginário indistinto de formas, mamas, coxas, nádegas, vaginas. Muitas vezes,
pensava em Fátima, agachada no chão, a puxar cera ao parquet de tacos; a
posição serviçal, as rótulas escanzeladas assentes na madeira dura, a bata
arregaçada, o vislumbre da sua escuridão fresca, faziam-no estremecer em
espasmos agitados. De forma mecânica, pegava no pénis e esfregava-o com vigor;
dotado de um frênulo elástico e longo, os movimentos levavam ao recolhimento
total do prepúcio, deixando a descoberto uma glande lisa e levemente nacarada
que, ao toque, acelerava o frenesi da excitação; meia dúzia de esfregadelas e
esguichava um espirro esbranquiçado que, com o chuveiro, fazia depois desaparecer pelo ralo do poliban. Baixava os olhos quando voltava à sala e
se sentava novamente ao lado da mãe. Ficava-lhe uma sensação de ignomínia que se prolongava durante o resto do serão.
2014/03/31
Pensão Gerês (4)
Ficamos na mesma posição durante
algum tempo, encaixados. Conversamos.
- Ainda gostas do Caetano Veloso?
- Já não, acho mesmo que não o
suporto.
- E do Chico Buarque?
- Oh, isso é amor para a vida
inteira...
Pouco falta para as seis. Não
tarda nada, o meu filho estará à minha espera no portão da escola, o rosto
redondo, muito bonito, parecido com o pai, os bolsos cheios de pedras e folhas
para mim. Tomo banho rapidamente, visto-me, pinto os lábios, ajeito o cabelo. Abro
as janelas. Em frente há um prédio pombalino abandonado, fuligem e cacos por
toda a parte, as ervas crescem no telhado e nas varandas. Os azulejos que
cobrem as paredes têm uma cor extraordinária. Um verde de bosque, misterioso,
profundo, húmido. O Alexandre chega pouco depois da casa de banho. Ao beijar-me
no pescoço sinto novamente o seu cheiro.
-Costumas reparar na beleza das
coisas?
- O quê?
- Se costumas reparar na beleza
das coisas?
- Sim, claro.
A resposta é de tal forma imediata
e mecânica que desconfio. É muito difícil encontrar quem repare na beleza das
coisas. Ele fixa o olhar numa das varandas do prédio abandonado. “Quem terá brincado com aquela bola?”,
pergunta e aponta para uma velha bola de futebol esquecida entre as ruínas. Olho-o
e, nesse instante, percebo por que razão nos encontramos assim, há já
tantos anos, intermitentemente, em quartos de pensões, sem querer nada um do
outro, sem desejarmos fazer parte da vida do outro. Descemos à rua. O Alexandre
fica na entrada do prédio à espera que a chuva passe. Corro para a paragem de táxis.
Tenho de estar às seis horas no portão da escola.
2014/03/30
Pensão Gerês (3)
Conheço o seu cheiro, um cheiro autêntico, de cabedal, de
pele curtida. O seu toque é lento, contido, certeiro. Certa vez, no
jardim da Feira da Ladra, pegou na minha mão e beijou-a. Um beijo discreto, mas sensual. Nesse instante, senti uma vertigem, tornei-me líquida, desejei
intimamente que me tomasse ali, num banco de jardim, à vista dos velhos que
jogavam à sueca. Atravesso-me agora na cama, deito a cabeça sobre a virilha esquerda do
Alexandre. Sinto o seu sexo pousado sobre o meu rosto. Dá-me pancadinhas ligeiras.
Penso: “Aqui estou, num quarto de pensão,
com duas grandes janelas a dar para o casario da Baixa, deitada com o homem que
me beijou a mão no jardim da Feira da Ladra”. Olho novamente o pénis. Pulsa
como se tivesse vida própria. Cheiro-o, humedeço as pontas dos dedos com saliva
e toco a glande, macia, frágil. Desço a mão pelo frisado do prepúcio recolhido,
agarro o fuste. Sinto um pulsar de bomba. Inclino-me, enfio por fim a ponta da
minha língua no meato. Sabe a sal e os nervos das comissuras parecem linhas
repuxadas. Encho a boca. Pouco depois, amarinho pelo corpo do Alexandre. Sopro-lhe
uma frase ao ouvido e viro-me de costas.
-Nunca quiseste fazer assim…
- Experimentei há pouco tempo e gostei.
O Alexandre entra
tranquilamente dentro de mim, percebo que se esforça para não me magoar. Ficamos
deitados, um sobre o outro, mal nos mexendo. “Desconcertas-me, Ana, excitas-me, se me mexo venho-me”. A sua mão
procura-me entre as coxas, no emaranhado dos meus pêlos muito negros e ásperos.
Começo a gritar. Não sei porque o faço. É a primeira vez que grito na cama. E se
a mulher da farda puída bater à porta? Uma vez, na feira de Grândola, ao andar
no Twister Gigante, também gritei assim. Sinto vergonha por estar aos gritos, mas
não os consigo controlar. O Alexandre continua a tocar-me. Tenho um orgasmo bom, muito diferente do que é habitual.
2014/03/29
Pensão Gerês (2)
“Ali”, digo pouco depois e aponto para um prédio que fica na esquina da Rua Barros Queirós. Na varanda do terceiro andar, uma placa antiga anuncia “Pensão Gerês”. Caminhamos, apressados. Ainda assim, sou capaz de me dar conta das movimentações dos africanos no adro da Igreja de São Domingos. Há homens ociosos que mantêm a alegria da conversação, falam ruidosamente, gesticulam, as palmas das suas mãos são cor-de-rosa clarinho, quase brancas, mas os olhos, de tão raiados de sangue, assustam-me. Duas mulheres, de turbantes coloridos, pés enfiados em chinelos de corda, estão sentadas num banco de pedra. Vendem malaguetas verdes, quiabos e uns pequenos frutos alaranjados que não conheço. A entrada do prédio da pensão cheira a humidade, bolores, madeiras bafientas. Por cima das velhas caixas do correio, pequenas placas identificam os inquilinos: um advogado, um técnico oficial de contas, uma esteticista, dois osteopatas e um astrólogo. Subimos ao terceiro andar e tocamos à campainha. Uma mulher velha abre a porta. Usa chinelos ortopédicos e uma bata azul muito puída da gola. Parece espantada com a nossa chegada e, quando ri, mostra os dentes da frente cheios de sarro amarelo. Não se vê mais ninguém, não se escuta um ruído. A pensão parece deserta, parada no tempo, como se há muitos anos ali não entrasse ninguém. A mulher caminha devagar por um corredor estreito até chegar a um pequeno balcão de madeira escura. Em cima de uma mesa de encosto com formato de meia-lua vê-se um escaparate com folhetos turísticos e um arranjo de flores artificiais desbotadas pelo tempo. Quer saber quantas noites vamos ficar. “Ficamos uma noite e pagamos já”, esclareço. A mulher guarda o dinheiro numa gaveta que fecha à chave e leva-nos por um segundo corredor ainda mais escuro. As paredes estão cobertas até meio por azulejos que formam um padrão de formas geométricas e, apesar da penumbra, os candeeiros, de vidro fosco, estão apagados. Tudo é silencioso e sombrio, mas, subitamente, a mulher abre uma porta e faz-nos entrar num quarto limpo, amplo, arejado, cheio de luz. Há um roupeiro de espelho oval entre duas janelas, a cama é grande e está coberta com uma colcha azul clara, de cadilhos brancos. A luminosidade faz-me piscar os olhos. O Alexandre fecha a porta e começa a despir-me.
2014/03/07
Pensão Gerês (1)
A Pensão Imperial já não existe. Agora é um hostel com ares de modernice, mobilado com caixotes do ikea, tapetes de cores neutras, molduras garridas com reproduções dos borrões do Adolph Gottlieb nas paredes. Já não há passadeiras de linóleo nos corredores, nem vasos de cóleos murchos aos cantos, o rapaz dos óculos muito graduados desapareceu. A cozinha, que funcionava como recepção, é agora um espaço estranho, não sei muito bem o que é, parece uma sala de laboratório, as paredes estão revestidas de azulejos verdes e, em cima das bancadas altas, há portáteis e seus sucedâneos. Uma rapariga, feiosa, com ar tristonho, cabelo ruivo mal cortado, consulta o facebook ao mesmo tempo que fala ao telefone. Pergunto ao gerente pela antiga dona. O homem, de barba muito cerrada e cabelo despenteado, roda os olhos na minha direcção, depois volta a pousá-los no ecrã de um computador. Parece aborrecido com a pergunta que lhe faço. “Já estava muito cansada”, acaba por dizer, “quis desfazer-se do negócio, ficámos nós com isto”. E cala-se sem dar mais explicações. Pelo olhar displicente, pelo encolher de ombros, consigo escutar para lá das palavras que lhe saem da boca. Diz assim: “Limpámos o lixo, não há um único vestígio da velha, pode olhar à vontade, não encontrará animais de loiça, cães, raposas, galos, não encontrará fruteiras de plástico nem naperões de linha em cima das mesas”. Olho em volta, toda aquela modernidade me entristece. “Já não gosto deste sítio”, explico ao Alexandre e descemos à rua. Continua a chover. Precisamos de encontrar rapidamente uma alternativa, já não temos muito tempo, às seis horas o meu filho espera-me no portão da escola.
2014/03/04
Dezembro
A minha mãe sofre de depressão crónica. Eu também. Pouco antes de ela regressar a Goa, senti-me bastante em baixo, sem vontade de fazer nada, sem vontade de estar com ninguém. Dezembro foi um mês terrível. Passei dias inteiros na cama. Pouco comi. Não atendi o telefone. Entreguei os meus filhos aos cuidados da Graça. Deixei de ler, de correr, de escrever. Até de tomar banho e de lavar os dentes. Cheguei a pedir ao psiquiatra que me internasse. Ele fingiu não me ouvir e aumentou-me a medicação. Um dia, porém, consegui levantar-me da cama, vestir-me e arrastar-me até ao trabalho. Ao fim da manhã, olhando em volta, senti uma vontade urgente de chorar. É-me muito difícil aguentar o choro. Querer chorar e não o poder fazer é uma autêntica tortura. Ainda pensei em ir para a casa de banho, trancar-me no cubículo pequeno, sentar-me na retrete, fixar o recipiente dos pensos higiénicos, chorar com a cabeça encostada à parede de azulejos esverdeados. Porém, temi que a minha aflição não desaparecesse com um choro silencioso. Sempre que pressinto um choro incontido, muito aflito, corro à igreja de Nossa Senhora de Fátima, sento-me ao lado do altar a Nossa Senhora do Carmo, fixo os noventa anjos e choro na sua companhia. Mas, nesse dia, sentia-me tão em baixo, tão suja, tão incrivelmente miserável e cansada, que temi não conseguir caminhar até à igreja. Aguentei o choro durante mais alguns momentos, mas, assim que as lágrimas me embaciaram o olhar, desci à rua e apanhei um táxi. Comecei a chorar, encolhida no banco. O condutor do táxi, um homem jovem de rosto grosseiro, atrapalhou-se, “A senhora acalme-se, não chore, tem aqui um lenço!” foi dizendo enquanto me espiava pelo espelho retrovisor. Mal cheguei a casa dos meus pais, entrei no quarto da minha tia para que o Joaquim não se desse conta da minha chegada. A minha mãe rapidamente se apercebeu do meu desespero. “Não aguento”- fui-lhe dizendo numa aceleração de palavras – “Tenho medo de ficar sozinha, tu vais para Goa, o Reinaldo volta para França, eu fico sozinha com os miúdos e isso assusta-me, aterroriza-me”. Mergulhada nessa tristeza tão sombria, senti-me pela primeira vez na vida incapaz de tomar conta dos meus filhos. Chorei durante muito tempo, aos soluços, nos braços da minha mãe. Pedi-lhe que me abraçasse com muita força e ela abraçou-me. Gosto dos abraços que estrangulam. Continuei a falar no tom delirante que às vezes me chega. “Sabes, mãe, o meu pensamento foge sempre para aqueles pensamentos, faço um esforço, juro que faço, mas não consigo libertar-me”. A minha mãe escutou-me em silêncio. Por fim, explicou-me que por vezes também pensava em acabar com tudo, mas guardava sempre para si tais pensamentos sombrios, nunca os partilhava. As suas palavras desconcertaram-me, nelas encontrei a revelação da dimensão da sua tristeza, mas também uma subtil crítica, era como se me acusasse de imaturidade, como se me aconselhasse a sofrer calada, sobretudo a nunca incomodar os outros com a minha angústia. Recuperei a calma. Deixei de chorar.
2014/03/01
Alívio
Pela manhã, ao
pequeno-almoço, li um conto da Katherine Mansfield. Nas primeiras páginas, a
escritora neozelandeza descreve o alívio que as mulheres de uma família inglesa
sentem quando Stanley, marido, cunhado, pai, filho, sai de manhã. Stanley parte
para o trabalho, leva o chapéu de feltro posto e a bengala que custou a
encontrar, Beryl, Linda, a velha Mrs. Fairfield, as crianças, Kezia, Isabel,
Lottie, ficam sozinhas. A casa volta a ser um lugar doce, tranquilo, feminino: as
mulheres aproveitam o fresco do jardim, notam os detalhes do mundo, tomam
banhos de mar, gozam o prazer de falar sem ter ninguém a perturbá-las. Até
Alice, a empregada, é atingida por essa inconveniente felicidade, lava a loiça na
cozinha, despreocupadamente, estouvadamente, desperdiçando água. “ Já foi? Já! Oh, que alívio, como as coisas
ficavam diferentes com o homem fora de casa. Até as próprias vozes pareciam
mudadas, quando se chamavam umas às outras; soavam quentes e cheias de ternura,
como se estivessem a partilhar um segredo”. Li este parágrafo, pela manhã,
no refeitório, e senti-me plena, estupidamente feliz. À noite, na cozinha, enquanto
picava alhos para temperar bifes e observava a torneira do esquentador (pinga
há mais de quinze dias, um pingue-pingue contínuo e silencioso), pensei
novamente no conto da Katherine Mansfield. De imediato, me aflorou ao espírito
o alívio que a minha mãe sente quando o meu pai parte sozinho para Goa. Os seus
olhos ganham brilho, às vezes, surpreendo-a a cantar pelos cantos da casa. Parece
uma outra mulher, alegre, tranquila. A minha mãe desfruta, com discrição, dessa
calma, mas, um dia, no quarto da tia Dé, depois de trocar a fralda ao João, levantou
os olhos e perguntou-me “Mas por que é
que eu me sinto tão bem quando o teu pai não está cá?” Logo a seguir, como
se temesse a sinceridade da minha resposta, baixou os olhos e começou a rir-se
nas momices do neto mais novo. A minha mãe não o confessa abertamente, mas,
pela alegria das conversas, pelo brilho dos seus olhos, é evidente que se sente
menos tensa quando o meu pai não está. Parece libertar-se de qualquer coisa que
a sufoca lentamente. No entanto, passado algum tempo, como se se sentisse
intimamente culpada por esse bem-estar, começa a insistir que tem de ir para
Goa. “Tenho de ir ter com o vosso pai”,
explica, “Não tem ninguém que trate dele,
a Ligorina só cozinha aquelas comidas condimentados que lhe fazem mal à pancreatite”.
É um discurso forçado, mas adequado à sua condição de mulher de setenta anos. Mete-se
sozinha no avião e vai ao encontro do meu pai. Fica por lá três, quatro meses. É
um tempo de profunda agonia e solidão. O meu pai ama a minha mãe, tem por ela um
amor antigo, comovente, mas isso não significa que cuide dela, que a abrace,
que lhe preste atenção. Passa os dias em bancos, repartições, conservatórias, serviços.
A minha mãe nunca o acompanha nessas andanças, fica na casa de Maina, sem ter ninguém
que a leve a Margão ou a Pangim. Penso nela muitas vezes. Como ocupará o tempo dessas
longas horas de solidão? De manhã, desce ao jardim, entretém-se a regar
as árvores de fruta e a apanhar folhas secas das roseiras. Pela tarde, senta-se no alpendre a ouvir as conversas da Fátima, indolente, preguiçosa, e
da tia Maria, má, feia, o olho cego de víbora sempre a largar uma aguadilha ramelosa.
Se lhe falta alguma mercearia, vai até à pequena loja que fica junto da igreja.
Volta a casa com um pequeno saco de plástico nas mãos, leva o corpo pesado do
calor, os seus chinelos pisam as vagens de tamarindo que cobrem a vereda do portão.
Arruma as compras no armário da cozinha, enfrenta novamente o silêncio. Às
vezes, a solidão da minha mãe torna-se incomportável. Telefona, choraminga, diz
não aguentar as saudades dos filhos, dos netos, da irmã. Desafio-a a meter-se
no avião e a voltar para perto de nós. A reacção da minha mãe é sempre igual. Emudece
o choro e, num tom firme, quase irritado, responde-me: “O meu lugar é ao lado
do teu pai”.
2013/11/17
2013/10/21
Funeral
Chove. A viúva mantém-se imperturbável, rosto sem lágrimas,
o corpo rijo como se fosse feito de pedra. Essa imobilidade, que soa um pouco a
afectação, apenas é quebrada pelos puxões que dá ao filho. Presa pela mão, com
uma lagarta de ranho a escorrer do nariz, a criança insiste em querer subir ao
monte de terra que cobrirá o caixão. Familiares e amigos mantêm-se silenciosos,
hirtos, o mesmo semblante inexpressivo, a mesma serenidade. Só uma velhinha,
que mastiga o vazio, soluça abertamente. Quando o coveiro começa a largar
pazadas de terra sobre o caixão, talvez incomodada pela contenção geral,
leva as mãos ao peito e exclama “coitadinho do meu vizinho!”. A viúva não
desvia o olhar, não se mexe. Dá apenas um novo puxão ao filho. O menino sorve o
ranho e choraminga.
O coveiro vai compondo desajeitadamente as coroas de flores.
Recordo o morto. Namorámos durante algum tempo, pouco depois do meu divórcio. Um
homem amável, de conversa fácil, incapaz, porém, de partilhar um pensamento
íntimo. Só uma vez, num dia igual ao de hoje, escuro, denso, chuvoso, me
revelou o seu mundo interior. Descíamos a Rua da Madalena em direcção à Baixa
quando parou a olhar uma varanda de vasos floridos. Como se fosse a coisa mais
natural do mundo, explicou que a morte não o assustava. O que o assustava era a
morte depois da morte, o esquecimento dos outros, sofria com a
possibilidade de ninguém recordar os seus gestos, o tom da sua voz, os principais
traços do seu carácter, sobretudo, as suas opiniões. Contou ainda que o pai morrera novo e a lembrança da mãe ajeitando as jarras da campa com flores frescas, beijando o nome incrustado na lápide, era a mais bela que guardava da infância. Como
que surpreendido com a sua confissão, ficou por instantes em silêncio, depois continuou a caminhar.
Esqueço essa estranha conversa. Volto a fixar o vulto da
viúva. Conheço-a vagamente. É bonita, inteligente, emancipada. Imagino que, ao
contrário de mim, não encontre satisfação na simples ostentação do seu corpo.
Tenho a certeza de que não voltará a entrar no cemitério. Cuidar dos mortos
deve parecer-lhe uma mania de gente ignorante, uma tradição obsoleta, até estúpida.
A ideia da campa degradando-se lentamente, enchendo-se de estrelas de bolor
preto, entristece-me. Uma rajada de vento forte desequilibra-me e faz-me pisar
uma poça de lama. Enquanto raspo o salto do sapato ao bordo de um aviso
camarário, tomo uma decisão: não pude cuidar do João vivo, cuidarei dele
morto.
2013/10/15
Despique
A Dina trabalha há muitos anos no minimercado que fica
nas traseiras do meu prédio. No início do ano lançou um romance e partilhou o
acontecimento com os clientes habituais. Caí na tentação de lhe confessar que
também andava a escrever um livro. Expliquei-lhe ainda que, se corresse tudo
bem, o livro sairia em Setembro. Desde então temos conversas muito
interessantes sobre o processo de criação literária. Acontece que, por cansaço,
também falta de talento, o meu livro não saiu em Setembro. A Dina, cada vez que
me apanha, insiste em querer saber quando é que será publicado. Respondo-lhe evasivamente,
às vezes, finjo-me distraída e não digo nada. Há coisa de quinze dias,
contou-me que escreveu um segundo romance. Sairá em Novembro. Dei-lhe os
parabéns, forçando um sorriso amarelo. Enquanto ensacava as compras, notei-lhe
um brilho de vaidade no olhar, como se me dissesse assim, toma lá, não
consegues acabar o teu livro e eu já despachei dois. Senti-me magoada. Não
mereço o despique e até lhe trouxe uma lembrança de Goa.
Ontem, numa grande livraria, procurei o livro da Dina.
Encontrei-o com facilidade na bancada dos livros coloridos. Tem uma capa cheia
de brilho e traz uma linda cinta a explicar que se trata de uma história de
amor, com um travo picante de erotismo. Li páginas soltas e não tardei a
pensar, muito aliviada, que merda, que grande merda, o que demonstra bem a minha
mesquinhez e não desmerece a escrita da Dina. Li as primeiras cinquenta páginas
do último livro do Coetzee, obra aclamada pela crítica – desconcertante,
assombroso, alegoria não sei do quê -, e pensei exactamente o mesmo, que merda,
que grande merda. Não voltei a entrar no minimercado. Não sou capaz de
enfrentar a alegria da Dina e humilha-me ser confrontada com o meu fracasso. A
decisão, porém, causa-me transtorno. Agora, se preciso de salsa, fiambre, pão,
massa para a canja, tenho de caminhar durante dez minutos até ao grande
supermercado que fica na outra ponta do bairro. Não sou propriamente rancorosa,
mas penso muitas vezes que era bom que a Dina fosse despedida.
Poderia dedicar-se a tempo inteiro à escrita, apurar o estilo, quem sabe até
ganhar um prémio literário. Eu ganhava o minimercado de volta.
2013/10/10
Outubro
Morri no princípio de Outubro. Enterraram-me num cemitério
com vista para a auto-estrada do sul. Passei os primeiros dias entretida,
inteirando-me da minha nova condição, descobrindo como é estar morta. Escutei o
restolhar das folhas dos eucaliptos e pude fazê-lo durante longos minutos,
concentrando-me apenas no ruído das copas, isolando-o do resto do mundo até se
tornar insuportável. Vagueei por alamedas, paralelas e perpendiculares, olhando as campas, lendo inscrições, observando a estatuária: gárgulas, anjos, cristos
lacrimosos, conchas de mãos piedosas. Cheirei as flores frescas das coroas
fúnebres e desfiz com as minhas mãos invisíveis corolas frágeis. No princípio
da noite, quando a escuridão era ainda clara, os portões do cemitério eram
sempre fechados com estrondo. As mulheres vestidas de preto voltavam para os
seus apartamentos de marquises de alumínio e sentavam-se sozinhas em frente do
televisor. Uma quietude insuportável abatia-se sobre o lugar e eu voltava então
ao meu corpo, deitado num caixão de cetim branco. Encaixava perfeitamente nele.
Uma noite, porém, senti desconforto ao voltar a mim. O corpo inchara e eu
sobrava dentro dele. Aninhei-me no canto esquerdo e procurei adormecer. Um
reco-reco pequeno, um barulho persistente, fez-me despertar. Pensei que fossem
térmitas alimentando-se do pinho do caixão. Abri os olhos. Vi duas lagartas
gordas, brancas, cegas, sorrindo-me. Uma das lagartas tinha boca de ventosa e
mordiscava a ponta esquerda do meu coração. Enervei-me. Não vivo sem corpo. Mesmo
morta, preciso dele. Não encontro conforto na imaterialidade, só compreendo o
que é concreto, comum, palpável. Enxotei as lagartas que fugiram como
toupeiras. Decidi partir. Tentei ressuscitar que é a única maneira que conheço
de largar a morte. Não consegui. É muito difícil. É preciso ser deus, filho de
deus, parente de deus, amigo de deus, para o conseguir. Na manhã seguinte,
estava entretida a observar o namoro dos pardais, vi chegar pela alameda os
meus três filhos. Não traziam flores. Vinham com olhos líquidos de abandono.
Nessa noite, deitei-me nas ruínas do meu corpo, era já só ossos, os malares
cavados, a carne ressequida. Ventava na arcada das costelas e o ruído desse
vento perpétuo não me deixou adormecer. A morte pesou-me mais do que a vida.
2013/10/04
Sala de espera
Tento ignorar
as mulheres com o útero já descaído, concentro-me no livro que o Luís me
emprestou pouco antes de morrer. Mal entro no gabinete percebo que a médica
está tensa. Acelerada, masca uma pastilha elástica e, de tanto o morder, tem o
canto do lábio superior cheio de sangue pisado. Sem sorrir, sem me olhar,
manda-me despir. Abre-me as pernas e, bruscamente, enfia uma sonda vaginal. Que sorte!, explica enquanto olha o
monitor, está limpinha, não precisa de
fazer nenhuma raspagem. Despede-se dizendo que daqui a um mês posso voltar
a engravidar. Saio do gabinete e volto a sentar-me na sala de espera. Não sinto
tristeza, apenas humilhação. Sei que o meu corpo não presta, vive deslassado do
resto, mas, para o suportar, sempre me agarrei à evidência da sua outra eficácia.
Não chego a ser mulher, sou apenas uma fêmea, um útero, uma máquina. É assim que me vejo. É assim que os outros me vêem. Engravidei
quando quis. Tive gravidezes calmas, trabalhei até à véspera do dia do parto.
Gerei crianças sadias, grandes, espertas, risonhas e muito bonitas. Toda a
gente mas gaba. Para mim era tão certo o nascimento deste filho que imaginei as
suas feições, a cor do cabelo, o recorte das mãos. Também pensei em nomes: Ana
ou Álvaro. Aproveitei até os saldos de verão para comprar roupa de grávida,
duas camisolas, uma preta, outra vermelha, um vestido estampado. Tudo muito
justinho e confortável como se quer numa grávida moderna.
Não percebo o
que correu mal desta vez. Aconteceu no domingo. O mais novo, sentado no chão,
entretinha-se com um puzzle. Preparava-me para lhe explicar que várias peças
estavam mal encaixadas quando senti uma cólica violenta. Deixei-o e corri à
casa de banho. Sentei-me na sanita e imediatamente escorreu um coágulo escuro,
morno, do tamanho de uma uva. Soube naquele instante que dentro daquele saco
estava um minúsculo lagarto arroxeado, morto, de mãos de dedos
membranosos, cauda embrionária. Fiquei sem saber o que fazer. Descreio do
aborto como forma de emancipação feminina e muitas vezes penso no destino
desses embriões e fetos expulsos antes do tempo. Que lhes acontece? Devem ser
metidos em grandes sacos de lixo pretos juntamente com rins, massas tumefactas,
mucos, quistos, secreções, escarros, ossos, restos de pele. A possibilidade
desses pequenos monstros serem indistintamente incinerados em fornos de altas temperaturas
impressiona-me. Faz-me muita confusão. Deixei-me ali estar, de pé, a olhar o
coágulo na sanita, sem conseguir descarregar o autoclismo.
Agora, estou
aqui, nesta sala de espera, limpinha, bem limpinha, como explicou a médica dos lábios
trilhados, sem precisar de fazer uma raspagem. Que faço às duas camisolas? Ao vestido
estampado que comprei nos saldos? Aos nomes que escolhi para o pequeno lagarto
assexuado? Ao rosto redondo que lhe imaginei?
2013/10/02
Sufixo
Li o relatório
várias vezes, satisfeita com o resultado final. Gosto de redigir ofícios,
contestações, pareceres, dá-me prazer apurar essa escrita glaciar, objectiva,
sem desperdícios, mas formalmente inspirada. Ao final do dia, corri à chuva,
procurei subidas íngremes, pisei poças de água e lama. Corro porque preciso cansar o corpo, é a única forma de o sentir vivo. Na volta passei
pelo minimercado, comprei broa branca, dióspiros, também morangos a um euro o
quilo. Fui buscar o Joaquim a casa dos meus pais, beijei o cabelo oleoso da tia
Dé, abracei muito a minha mãe, o meu pai pediu-me cuidado com as corridas
tardias. Já em casa, enquanto escolhia alguns livros para o R. levar para
Dunquerque, encontrei A Aldeia de Stepantchikovo e
os Seus Habitantes, o livro mais divertido que li em toda a minha vida. Levei-o para o quarto e deixei-o em cima
da mesinha de cabeceira. Lavei os morangos, arranquei-lhes o pezinho,
enchi quatro grandes taças, polvilhei-as com açúcar e um salpico de água de
rosas tal qual aprendi a fazer num programa de culinária inglês. Os meus filhos espantaram-se quando me viram chegar com as taças dos morangos.
É o nosso jantar, expliquei. O mais pequeno bateu palmas e, com a sua
voz de corneta, exclamou: és a melhor mãezinha do mundo. O amor num sufixo. Já os
deitei, beijei, escutei cada um falar do seu dia. Também já tomei a fluoxetina
e o comprimido cor-de-rosa para dormir. Terei uma noite branca, lisa, sem
sonhos. É isto um bom dia: eu, livre de calamitosos delírios, aceitando a
vida em toda a sua bela tranquilidade, não querendo, não esperando
absolutamente mais nada.
2013/10/01
Andar a pé
“Posso morrer porque amei e
porque fui amada. Gostei de homens, de mulheres, de velhas (de velhos não), de
bebés, de bichos, de plantas, de casas, de filmes, de concertos, de quadros, de
teorias, de jogos, de pastéis de nata, de jesuítas, de russos, de hamburgers,
de Paris e de Londres. Nunca fui a Nova York e gostava de ir, mas não me
importo de morrer sem ter ido. Também nunca tive um orgasmo, mas posso morrer
sem nunca ter tido um orgasmo. Não me arrependo de nada. É claro que Nova York
não se compara com um orgasmo. Um orgasmo é muito mais importante.”
Adília Lopes, Irmã Barata,
Irmã Batata
2013/09/25
Coração
No dia seguinte, a cidade despertou, ignorando a dimensão da
tragédia. Os jovens casais despediram-se com um beijo. Um homem pediu à mulher que
arranjasse beterrabas e repolho no mercado e preparasse um borsch com natas
azedas para o jantar. Uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas
de pepino e pão duro. Dois velhos planearam uma pescaria no rio, num recanto
fresco, perto do bosque de abetos, onde nadavam trutas gordas. Uma mulher
apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu,
sem a saber explicar, a imensa solidão dos espaços vazios. A vida continuou como
se nada fosse, a mancha invisível, porém, já se havia espalhado, entrara nas
casas, penetrara nos solos, procurara o coração dos objectos, dos animais e das
pessoas para aí se instalar.
2013/09/20
Endofalk
A preparação para o exame durou dois dias. Andei a dieta de caldos, carnes magras e pão branco, fiambre de peru, peixes
magros, carapau, faneca e robalo. Nada de legumes, nada de fruta, quatro
saquetas de endofalk diluídas em muita água, três litros para beber, de quinze
em quinze minutos, na véspera. O médico explicou-me com familiaridade: Ana
Clara, se fores muito presa dos intestinos, podes juntar ao endofalk uma colher
de dulcolax. Ele a falar, eu a pensar no canto da sibila, em sefarditas e
aristos. À cautela, não fosse dar-se o caso de não levar a tripa bem limpa e
ter de repetir o exame, segui o conselho: juntei duas colheres de laxante e
espremi meio limão para evitar a agonia de tanta doçura. Enchi um copo de vidro
biselado muito bonito que roubei este verão da casa abandonada. Levei-o à
boca, bebi de trago como faço nas noites em que procuro o sossego de uma
embriaguez rápida. Comecei a preparar o jantar e aumentei o volume do rádio.
Abraçado às minhas pernas, o Joaquim fala de ninhos, ouriços e castanhas, o
mais velho, acelerado no quarto, está nas habituais atrapalhações da adolescência. Tenho um potro e um alazão. A doce menina contempla em silêncio a
travessa do peixe. Sorrio e esqueço-os. Enquanto espero que a água levante
fervura para deitar o arroz, penso no homem de mãos escuras que não me
toca, não me quer. Na sua indiferença e distância reside a justificação do meu
amor. Felizmente o endofalk não tarda a fazer efeito e liberta-me da melancolia.
Empalideço e corro à casa de banho.
2013/09/14
2013/09/12
Fervura
A adolescência trouxe-me uma espécie de fervura ao sangue.
Foi por volta dos vinte anos que desejei morrer pela primeira vez. Contava
lamelas de comprimidos. Pressionava pontas de faca contra os pulsos. Ficava à
beira do passeio a sentir o corpo estremecer à passagem próxima dos autocarros.
Subia ao telhado do prédio com o intuito de me atirar lá de cima. Apesar da
angústia, sinto um conforto esquisito quando recordo esses
instantes desesperados, sobretudo quando me chega a lembrança da beleza extrema
do telhado do prédio dos meus pais. Abria a pequena porta de metal e o ar era
subitamente puro, livre de fuligem cancerígena. Olhava em redor, só via céu, o
alinhamento simétrico das torres de doze andares, a pista do aeroporto ao
longe. Parecia-me que ali, naquela dimensão, mundo inóspito, silencioso,
solidão muito branca, o ar voltava a chegar-me aos pulmões. A pouco e pouco
passava-me a vontade de morrer. Deitava-me no declive de telhas, esverdeado de
líquenes, sentia o vento no rosto, esperava que o tempo passasse.
Pensar na morte tornou-se num vício. Aliviava-me. Fazia
listas de métodos, tentava perceber qual o mais eficaz e menos
doloroso. Todos apresentavam desvantagens e dificuldades. Na queda havia o
instante em que o corpo bate no passeio e o crânio se racha. Cortar os pulsos
trazia o incómodo do sangue empapando as carpetes da sala e a certeza de morrer
lentamente. O enforcamento parecia-me uma morte feia, abrupta, os enforcados
morriam aos soluços, o corpo sacudido pelo estertor final, a língua de fora.
Outra coisa me fazia rejeitar o enforcamento. Sabia que os enforcados perdiam o
controlo do esfíncter e a ideia dos meus pais darem comigo morta, cheia de
urina e fezes, envergonhava-me. Tomar comprimidos era, de longe, o melhor
método, mas havia a possibilidade da falhar a dose, se não tomasse a quantidade
certa corria o risco dos outros encontrarem artificialidade no meu gesto. A
reflexão enfraquecia pois a minha determinação. Queria morrer, mas através de
um gesto que fosse simples como beber um copo de água ou desligar um
interruptor.
Durante a noite, deitada na cama, muitas vezes, pensei que a
solução mais fácil era entregar o assunto a um especialista. Podia simplesmente
contratar alguém para me matar. Havia maridos que contratavam assassinos para
matar as suas mulheres e mulheres que contratavam assassinos para matar
os seus maridos. Por que não havia eu de contratar quem me matasse? Estes
pensamentos extraordinários chegavam geralmente depois de me masturbar a pensar
em prostitutas com grandes mamas e vestidos de lantejoulas. A ideia do
pistoleiro parecia-me boa, mas não tardei a perceber que a morte, encomendada e
eficaz, era um pouco como as prostitutas de vestidos de lantejoulas: um luxo
que não estava ao meu alcance. Não tinha dinheiro para contratar um assassino,
e mesmo que tivesse, não conhecia nenhum. Vivia num bairro de classe média,
pacato, perto de Sacavém. Havia apenas alguns heroinómanos que roubavam
enciclopédias, loiças finas e garrafas das garrafeiras dos pais para assegurar
a dose diária. Tudo era cinzento e deprimente. Encontrar ali um assassino não
era fácil.
Mas, por mais que tentasse livrar-me dos pensamentos
suicidas, a vontade de morrer não me largava. Tornei-me obsessiva, a ideia
era-me tão agradável como sentir a luz da tarde coada pelas cortinas brancas no
quarto da tia Dé ou observar a minha mãe, nas manhãs de sábado, limpando o pó
do grande móvel escuro da sala. Sentia-me naturalmente desadequada, anormal,
adensava-se a minha inquietação: não só me masturbava a pensar em mulheres
prostibulares como sentia esse desejo latente de morte. Muitos anos
passados, habituada à natureza cíclica desse desejo, a minha iniciação no
desespero parece-me caricata. Às vezes, entre soluços e lágrimas, dá-me até
vontade de rir. Tudo bastante dramático, sofrido, estupidamente inconsequente.
Sei agora que, assim como somos pornográficos às escondidas, somos suicidas às
escondidas. A vida tem um punhado de coisas boas, mas não é como se pinta.
Quase sempre é aborrecida, uma desilusão, está cheia de sofrimento,
tristeza, injustiça, ruas sujas e íngremes, crianças com fome, gente silenciosa
e desesperada. Como não achar a vida insuportável? Não tenho dúvidas de
que a morte é desejada por muita gente e constantemente. Se houvesse um método
infalível, fácil, instantâneo, limpo, haveria no mundo uma mortandade grande,
talvez fosse até preciso mandar construir crematórios, valas comuns, investir
na formação de coveiros, técnicos de equipamento de cremação, cangalheiros. Mas
há vinte anos, precisamente há vinte anos, não tinha o discernimento de hoje,
vivia na certeza da minha singularidade. Dava voltas na cama, inquieta. Quanto
mais pensava no assunto mais me convencia de que a morte era o melhor que a
vida tinha para me oferecer.
2013/09/11
2013/09/10
Indicador
Fixo o almoço: sopa de feijão e uma pêra cozida num líquido
licoroso. O jornal está aberto. Finjo ler. Recordo o desenho do meu sobrinho, a
boca do meu irmão, o sonho de domingo interrompido pelo telefonema da Dá.
Distraio-me com pensamentos soltos, lembranças felizes, mas, atrás, correm as imagens
de sempre, latentes, dolorosas. Desejo o vazio, isso e aprender a deslizar o indicador no ecrã de um telefone. Sinto o cheiro da minha transpiração e
noto pêlos escuros nas pernas. Mantenho-as, porém, cruzadas, à vista, para que sejam
observadas na sua triste mornidão pelos homens que esperam na fila. Enquanto
levo a colher à boca observo o rapaz das sopas, há doze anos que o vejo ali, entre
a Rosa e a Fátima, sempre no mesmo aprumo: pega na concha, mete-a na panela, dá
duas ou três voltas para dar corpo ao caldo, trá-la vertical e, com um
rápido movimento do pulso, quase imperceptível, faz verter o líquido na tigela.
Para além de ser excepcionalmente bom naquilo que faz, o João é gentil, doce.
Imagino-o a viver com uma avó, os dois, felizes por se terem, a
observar a cintilação do televisor. É isto a minha vida. Almoçar sozinha, imaginar
as noites do rapaz que serve sopas e mostrar as pernas aos homens que aguardam na
fila do refeitório.
2013/09/05
Filha
Pergunto “Nunca sentes vontade de maltratar os mais fracos,
os miúdos doentes, aleijados, aqueles que são infelizes ou simplesmente parecem
infelizes?”. Diz que não e deixa cair a cabeça no meu colo. “Não acontece
sempre, mas, por vezes, tenho vontade de gritar com a mulher que pede à saída
no metro e, hoje, durante a hora de almoço, senti vontade de pontapear
uma criança. Maltratar os fracos sabe sempre bem.”, explico com vagar e cheiro-lhe
o cabelo.
Anão
Os poetas, antes de tudo, celebram o amor, e têm
razão, porque nada como o amor precisa tanto de ser transformado naquilo que
não é. As mulheres tornam-se então melancólicas, enche-se-lhes de suspiros o
peito, e os homens ganham um ar sonhador, pois todos percebem imediatamente que
um poema que desfigura a tal ponto a realidade deve ser particularmente belo.
O Anão, Pär Lagerkvist
2013/08/30
Malha metálica
Usa alpercatas roxas, calças de algodão descontraidamente
arregaçadas, um fio de ouro com um berloque fluorescente. É uma mãe jovem,
cheia de graça e entusiasmo. Conheço-a vagamente do portão da escola. A
conversa sai-lhe diluviosa e o tom vai num crescendo de afectação nasalada. É
extraordinário como é capaz de libertar uma quantidade tão grande de palavras. O ritmo é
alucinante, quase mecânico. Nem por um segundo hesita. Talvez seja isto a
capacidade demiúrgica do dizer. Ser capaz de falar assim parece-me uma proeza
irrealizável, quase mágica. Mas, aos poucos, o ruído torna-se excessivo. A
conversa obriga-me a um esforço de concentração: tenho de escutar, acenar a
cabeça, responder, sorrir. A vida passa a ser insuportável e a realidade
paralela, onde sempre renasço, desaparece lentamente. A mulher continua a
falar. Passo a mão pelos borbotos da blusa e fixo os sapatos novos que
comprei numa loja de calçado ortopédico. Enquanto noto o brilho encerado da
pele maleável desejo que a mulher emudeça ou morra. Podia simplesmente
pedir-lhe que se calasse, mas a minha cobardia tem raízes fundas, grossas como
dedos, bastante poderosas e paralisantes. Nunca serei capaz de interrompê-la,
tocar-lhe no ombro, explicar-lhe educadamente que preferia estar ali, em silêncio, em frente da carne morta na vitrina do talho, a observar o empregado vesgo
encarregue de desossar uma perna de cabrito, um prodígio de brutalidade que, a
cada novo corte, compõe o bivaque da farda ensanguentada e ajeita a luva de
malha metálica.
2013/08/26
Caldo de cenoura
Acordei com a habitual sensação de vergonha e cansaço,
picadas na mama esquerda, dores de cabeça e mau hálito. Deixei-me ficar sentada
na cama a olhar a criança desconhecida que cavalga uma nuvem de fuligem. Durante
a manhã, peguei no processo de um jovem médico, compulsivamente aposentado por
sofrer de psicose delirante crónica. Senti-me aliviada por ter uma doença que, avançando com lentidão, me poupa do enxovalho social. Tenho-a há vinte anos, e, na maior
parte do tempo, ninguém dá por ela. Ao almoço comi um caldo ralo de cenoura e encalhei
na seguinte expressão: capacidade demiúrgica do dizer. Li-a na contracapa de um
livro e não a compreendi.
2013/08/25
Calor de Agosto
Matou-a com trinta e quatro golpes de faca. Atingiu-a nos
braços, nas pernas, no tronco, vazou-lhe uma vista. O médico legista explicou
que, pelas marcas, se percebia que a ponta da faca fora torcida depois de
enterrada no olho. Para justificar tanta facada, o assassino explicou ao juiz
que encontrara, naquela tarde de Agosto, um outro homem em casa. O ciúme falou
mais alto. Pegou numa faca e, enquanto o calor abafava o apartamento,
escorrendo pelas paredes, esfaqueou a mulher. O calor era muito e talvez tenha sido esse calor
de Agosto, tão ardente, que lhe ateou a raiva e permitiu que o ódio se
apoderasse de si. Talvez, continuou o homem, se estivesse um dia mais fresco, a
raiva não tivesse ardido como ardeu.
Com o calor de Agosto, num instante, a fagulha se ateou e incendiou-lhe o
corpo. A culpa, via-se bem, era dele, que não era homem para a não assumir, mas
também do calor, do maldito calor de Agosto. O juiz escutou o assassino em
silêncio e encontrou beleza nas suas palavras. As vizinhas, durante o
julgamento, contaram os pormenores daquela vida. A pancadaria era muita e as
discussões permanentes. Discutiam por tudo e por nada. Por causa do dinheiro,
por causa do choro do menino, que tinha cólicas, mas, sobretudo, por
causa da televisão. Ele queria ver o domingo desportivo; ela queria ver as
telenovelas. Os gritos interrompiam o silêncio da noite. Eram gritos
lancinantes. Pareciam arrancados de dentro. O homem chamava muitos nomes à
mulher, nomes indecentes, porcos e ordinários, nomes que custava repetir ali,
na sala de audiências, na presença dos senhores doutores juízes. Porém,
explicaram as depoentes, quando amanhecia, a porta do apartamento abria-se e
saiam os dois, homem e mulher, a caminho da paragem do autocarro. Como se nada
se tivesse passado. Às vezes, quando a mulher trazia o corpo mais moído da
pancada, o homem aliviava-lhe a carga e levava o bebé ao colo. Uma mulher
contou que, muitas vezes, enquanto ele lhe batia, ela pedia “Amor, por
favor, não me batas na cabeça”.
(A última frase, lida há alguns anos num jornal, não me larga e, hoje, para o meu filho mais velho, para lhe mostrar a maldade de Deus, li uma passagem de um conto do Albert Cossery, o do barbeiro que mata a mulher.)
2013/08/23
Lésbica turca
- Estás horrível, mãe. Pareces uma lésbica turca.
- Sou uma lésbica turca. - respondo e, lentamente, começo a descolar as bordinhas do adesivo para lhe mudar o penso.
(os mais velhos voltaram; a felicidade, por vezes, parece-me uma coisa bastante simples e alcançável.)
2013/08/22
Encontro feliz
Andava por ali, mole, espapaçada do calor, desinteressada,
triste por sentir as calças de ganga ligeiramente apertadas. Estava já de saída
quando, numa prateleira baixa, alinhados, descobri vários livros do Albert
Cossery. Um encontro feliz. Li páginas soltas e, de imediato,
escolhi três livros. Perto do balcão, desacelerei na espiral consumista:
lembrei-me de que ainda precisava de passar pela perfumaria para comprar uma
base de verão. Comprar três livros, mais uma base da dior, assim de uma
assentada, pareceu-me um capricho, um devaneio perdulário, apetecível, mas
revelador de destrambelhamento e desorientação. Decidi levar apenas dois livros,
o das entrevistas (5 euros) e a colectânea de contos (12 euros). Ainda pensei
em prescindir da base de verão, mas, na minha vida, a estética pesa tanto como a literatura e a frivolidade por enquanto fica-me bem. Percebi, no
entanto, que desejava ter exactamente aquele exemplar de “Mandriões no vale
fértil”. Não outro qualquer. É raro acontecer, mas, por vezes, dá-se uma
espécie de magnetismo entre mim e certos livros. Deve ser uma sensação parecida
com o amor à primeira vista. Há livros cheios de sedução fantasmagórica que parecem dizer-me assim: sou teu, és minha, leva-me para o teu quarto, toca-me
com os teus dedos curtos de cutículas roídas, depois esquece-me nos
entremeios dos teus lençóis. Não deve haver muita gente à procura dos mandriões
do vale fértil. Tenho a certeza de que, deixando o livro na prateleira onde o encontrei,
daqui a uma semana, um mês, um ano, voltaria a encontrá-lo no mesmo lugar. Mas,
à cautela, não vá o diabo tecê-las e um qualquer parvalhão pegar nele, enfiei-o
atrás de uma fila de livros técnicos, num canto escuro onde ninguém o encontrará.
2013/08/18
Maputo
Três da manhã. Li o primeiro romance “faceto”, o primeiro “frívolo
livreco”, reli o segundo, tomei meio comprimido, bebi um chá de ervas muito
quente que me queimou o avesso. Animei-me com a Custódia, a Pascoela, a Eufémia
Tronchuda, a Felícia, esqueci até a irritação que me provocou a misógina comparação
entre a Fêmea e a Política. Consolada, julguei a noite ganha, pensei que adormeceria
rapidamente, esquecida do resto. Voltei porém a não conseguir adormecer. Dei
voltas e voltas na cama. Chegou a espertina habitual. Pensei em mil e uma
coisas. Em aulas de tango. No meu cabelo que não pára de cair. Na mulher de ancas largas desmerecendo um jovem
escritor. No entusiasmo apopléctico, deslumbrado, cheio de tremores, da M. em relação a um
outro que cheira mal dos sovacos. No cheiro da minha prima Filomena. No cheiro dos escabicidas. Em sudação animalesca. Nas contas que tenho para pagar. Em
Dunquerque. Na Cornualha. No meu filho João, distante, provocador, cada vez
mais bronco. Pensei também na primeira noite em Maputo. A noite quieta e o velho
da bomba de gasolina dançando sozinho ao som desta canção.
Leda
Voltei com o Joaquim. Fazem-me falta os outros. Passei
o dia em limpezas, as minhas mãos estão cheias de cortes, a polpa dos dedos
inchada. Cheiram a lixívia. Preciso de ter a
casa limpa, gavetas ordenadas, roupas lavadas, as madeiras a cheirar a óleo de
cedro. Deitei o Joaquim, mordi-o e lambi-o. Não jantei e bebi duas cervejas no estendal. Lembrei a conversa com a minha
irmã. Contou que a Laurinda, depois do divórcio, bebia muito. Também bebo, bebo
todos os dias, não muito, só o suficiente para largar a minha pele e fingir que
sou outra qualquer. Despi-me para
tomar banho. Vi-me reflectida no espelho do lavatório, nudez morna, corpo escuro, olhos borrados de khol, o cabelo solto, pensei no marroquino do café da aldeia, desejei que me visse naquele instante, a entrar
no banho, mascarada de leda cigana.
2013/08/02
Conchanata
Havia sempre flores frescas nas jarras. O quarto estava
limpo, arejado, perfumado. A cama feita com os meus lençóis preferidos. Na
fruteira, em lugar de destaque, para que a visse mal entrasse na cozinha, uma
papaia madura. Essas pequenas atenções da minha mãe amorteciam o desconsolo do
regresso, faziam-me esquecer a liberdade das férias, longe da disciplina do meu
pai e da preocupação excessiva da minha tia. Agora sou eu que preparo o
regresso dos meus filhos. A Madalena volta hoje do estágio, chega no comboio
das onze, frágil, bonita, com os dentes tão tortos. Passei a tarde a arranjar
tudo para que se sinta feliz por voltar a casa, a nossa casa: comprei ramos de
cravinas, obriguei o Joaquim a fazer um desenho colorido para embrulhar uma
tablete de chocolate salgado, há bacalhau com natas no forno, figos no
frigorífico, uma conchanata no congelador.
2013/08/01
Pilriteiro
Dos ramos espinhosos nasciam
folhas enceradas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na
Primavera, a árvore cobria-se de flores muito perfumadas e, no Outono, de pequenos frutos vermelhos que pareciam romãs e cresciam
em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o
gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas
escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a minha vontade de as trincar, explicava que tais frutos eram venenosos, certa
vez até aparecera no hospital um menino, tão pequenino, muito doente
por ter comido aquelas bagas. Depois, com rispidez, dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os
frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do
Campo de Santana, perto do infantário, talhada em sebes vivas, também nos jardins do Seminário dos
Olivais onde o cheiro das amoras maduras tornava as tardes de Agosto mais quentes. Sempre que via a tal arvorezinha chegava-me uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me
lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma
daquelas bagas vermelhas cairia no chão tal qual a Branca de Neve
quando provou a maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, imaginava eu, pequena, unhas sempre roídas, passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por
isso, por temor, nunca desobedeci à minha tia. Apertava os pequenos frutos nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim
quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem uma polpa vermelha, dramática, sinal de paixão e doçura. Hoje, quando cruzo o parque da Fundação, ignoro os avisos para não pisar a relva e não apanhar flores e frutos. Apanho sempre meia dúzia de bagas das árvores que
crescem junto do Centro de Arte Moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas
continuam sem cheiro. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que as meterei à boca.
(Voltei a pegar no livro que, para além de castelos merovíngios, fala de pirliteiros e pirlitos. Cedo, voltarei a abandoná-lo.)
2013/07/30
Für Elise
Um dia, para além dos habituais pacotes
de pinhoadas e amores, a prima Laura trouxe-lhe da feira de Grândola uma bonequinha
musical. Era uma figura de porcelana áspera, uma dama antiga, cabelo aos cachos,
vestido enfunado com um remate de folhos, uma cadelinha dengosa nos braços. Por
baixo do vestido havia uma pequena manivela que, torcida, fazia a boneca dançar ao som de uma melodia triste. A minha avó adorou o presente e, muitas
vezes, mostrava-me a pequena estatueta, insistindo na sua beleza e
maravilhando-se com a música sombria, mas bonita, que se libertava do seu
avesso. Dava-lhe corda e, muito quieta, vestida de negro, lenço de lã na cabeça,
escutava o arranhar melodioso das palhetas metálicas no pequeno carrilhão. Eu
não dizia nada. Olhava a minha avó com distância e condescendência. Achava a
boneca um objecto de mau gosto, bastante foleiro com as suas cores garridas e
traços grosseiros. Desprovida de qualquer beleza evidente, sem marcas de erudição
estética, a boneca causava-me naquela altura um arrepio de nojo. Passados
tantos anos, morta, enterrada, quase esquecida a minha avó, a lembrança dessa
pequena boneca de loiça liberta em mim reflexões frívolas, tremores poéticos,
as melancolias mais íntimas.
2013/07/29
2013/07/25
Marcador preto
Escrevo no caderno com um marcador preto. Tenho páginas e
páginas escritas, coisas sem interesse, as banalidades do costume, sobretudo
notas sobre os outros: a mulher-elefante que todos os dia chega ao café,
cigarro ao canto da boca, voz grossa, a expectoração solta a notar-se em cada
gargalhada, o marido da Graça esperando no carro, tão acabado do cancro, quase
morto, as mãos da minha irmã, o cheiro dos pés do Joaquim, os olhos da minha
mãe, o meu pai de pijama pedalando na marquise da sala para afugentar as
atrapalhações da idade. São apenas impressões, desabafos, nada que mereça a correcção
de uma segunda leitura. E, no entanto, gosto de olhar essas páginas ligeiras,
mas fecundas, cheias de vida. Reaprendi a escrever e, depois de anos de
abandono, tomei posse da minha caligrafia, ligeiramente inclinada para a
direita, correndo, arrepiada, fora de margens e linhas, cheia de golpes, hastes
longas, exageros. Enquanto escrevo deslumbro-me com a habilidade e a velocidade
da minha mão.
2013/07/24
Solipsista
Solipsista.
Nossa Senhora do Carmo. Ombros nus. Vestido branco. Alinhavos vermelhos. A
velha má da mantilha preta. Fantasmagoria. Malaquias imolando o filho. O cutelo
ao alto. Luz coada pelos vitrais. Noventa anjos. A pele das mãos rebentada.
Tomo conta de ti e dos teus filhos. Rosto tortulhado. Cabeças de pus esverdeado.
Pontos negros. Carnes secas. Unhas roídas até ao sabugo. O cheiro das flores de
figueira. Duas figueiras em Xabregas, outra numa esquina da cidade, crescendo
num canteiro de fetos velhos. Um cipreste de gálbulos languinhosos. Uma mosca
vareja. Uma porta de fitas. Amostras de cremes firmantes, clareantes,
hidratantes. Farmacopeia variada. Duas manchas de pano. Uma sombra picada de
bexigas. É um poeta muito, muito, muito bom. A sério? A sério. A palavra grunho
impressa. O sexo dos textos. O tempo das mulheres. Um livro na Rua de São
Domingos de Benfica. Uma cama na Rua Passos Manuel. As mãos do homem no corpo da mulher. Tomo conta de ti e
dos teus filhos. Uma tosse cheia de gosma. Um arfar pesado. Uma pinça
arrancando pêlos negros do buço. Sarro atrás da torneira do lavatório. Outros
sarros. Duas irmãs descalças apanhando bolotas para matar a fome. Mãe. Tia. O
vento morno. O sino marcando o início da tarde. Uma mulher deitada no meio da
rua mais feia da cidade. Mãos entrelaçadas. Olhos fechados. Palavras novas e
advérbios interrogativos. Porque chorava? Porque o tratava mal? Por que chorava? Por que o tratava mal? A certeza da
ignorância. Duas sardinheiras no canteiro da escola de yoga.
(livre associação.)
(livre associação.)
(Almeida
Garrett, Viagens na Minha Terra: “Joaninha,
Joaninha, porque tens tu os olhos verdes?; Eça de Queirós, Os Maias: “Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?)
2013/07/23
Vício
O Flaubert
aconselhava a ter cuidado com a tristeza. Cuidado com a tristeza, dizia ele,
pode tornar-se num vício. Percebo bem o que queria dizer. Sou depressiva há muitos anos, mais de vinte, e não sei como
me livrar da tristeza quando ela decide tomar conta de mim. Já tentei psicoterapeutas e
psiquiatras. Já tentei o suicídio. Já tomei muitos comprimidos, lamelas e lamelas de comprimidos. Já falei com um padre. Já tive filhos para que a maternidade, me secundarizando, acabasse de vez com a tristeza. Já tentei preencher o tempo com coisinhas para experimentar a felicidade dos gestos rotineiros.
Nada resulta. É preciso força de vontade para nos livrarmos de um vício e eu
não a tenho. Sou de vícios e fraquezas.
(São cinco da manhã. Há três noites que não durmo. Fico de olhos abertos a olhar a escuridão, a escutar a cómoda estalar com o calor. Podia aproveitar a espertina para escrever sobre as duas mulheres que encontrei no cemitério, sentadas em banquinhos de lona, sossegadas, a limpar uma campa. Achei-as muito bonitas, ali no meio da brancura funérea, tratando os seus mortos. Não sou capaz. Espero apenas que amanheça. O dia é sempre melhor do que a noite. Está cheio de ruído, o silêncio não pesa.)
2013/07/21
Domingo
No escuro da sala, peguei-lhe na mão e sussurrei-lhe ao ouvido "amo-te". Depois, estivemos sentadas num banco, em silêncio, a olhar o Joaquim correr no parque, irrequieto como um cabritinho, os pés de dedos gordos enfiados nas sandálias baratas. Gostava que ele nunca crescesse, que ficasse assim para sempre, pequenino, a depender de mim, a fazer-me companhia, a ser a minha muleta, acabei por lhe confessar. Ele vai crescer, mas podes sempre ter outro filho, respondeu, segura, serena, certa das palavras que usa. E com quem?, perguntei-lhe, atrapalhada com aquela conversa. Ela respondeu. Pergunto-me muitas vezes como é possível que esta criança seja minha filha. Às vezes, aliás muitas vezes, parece que é ela a mãe e eu a filha.
2013/07/20
Aninhas e a flictena
Aninhas, nas noites de Inverno, enquanto
esperava que o professor de semiótica ligasse, sentada em frente da televisão, acendia sempre um aquecedor eléctrico de resistências incandescentes. Costumava ter os pés
frios e os dois filamentos cor de laranja, brilhando na escuridão,
davam-lhe algum consolo. O lume é uma
companhia, lembrava-se de ouvir a avó dizer quando era pequena. O pequeno radiador eléctrico, com as suas lágrimas de
fogo contido, pousada aos pés, era um triste substituto dessas fogueiras.
Fazia-lhe companhia.Mas deve ter-se cuidado com as
companhias que as há perigosas. Uma noite, em que adormecera a ver um documentário sobre crocodilos, acordou com um cheiro intenso de borracha queimada.
Deixara os pés demasiado perto do aquecedor e a sola das pantufas amolecia com o calor das resistências ligadas na potência
máxima. Em vez de se descalçar, assustada, levantou-se com um salto. O peso do
corpo pressionou os pés sobre as solas que ferviam. A pele ficou apenas
superficialmente queimada, mas a erupção de uma flictena obrigou-a a estar
sem andar durante alguns dias; deitada na cama, os pés cobertos com um creme gordo, entreteve-se a ler revistas de culinária para
aprender a confecção de pratos que agradassem ao professor de semiótica. A epiderme acabou por
cair, nasceu outra, dura e calejada e, por baixo do mindinho do pé esquerdo, no lugar da flictena, uma pequena verruga muito obstinada que, apesar da constante aplicação de adesivos
com ácido salicílico, insistia sempre em nascer.
2013/07/17
Planta carnívora
A
modernidade exige-lhe artefactos: usa fiadas de pulseiras, colares coloridos e,
quando ajeita o cabelo, mostra uma borboleta negra, tatuada no pescoço. É dada
a misticismos, vitalismos e esoterismos, acredita no poder da risoterapia, da
cristaloterapia e da cromoterapia, também pratica o reiki, o tai-chi e o
kung-chi. Demora-se a explicar cada conceito, cada modalidade. No seu entender, explica muito séria, a felicidade pode facilmente alcançar-se com mantras, meia-hora de meditação
por dia e uma alimentação livre de impurezas. Escuto-a sem a interromper. Tudo
aquilo me parece disparatado e até um pouco triste. Tanto cuidado na escolha e
acabo a falar com uma tipa que, rejeitando a tradição das suas origens, sem temer o
ridículo da desadequação, parece admirar apenas a grandeza espiritual de países
longínquos. Desprezo quem, encontrando nesse tipo de contemplação um sinal de mundividência, não se dá conta que tal apreço pelo
exótico revela apenas provincianismo. Que estúpida, que grande estafermo, penso. Com um entusiasmo quase
delirante, a rapariga põe-se a falar do espírito cósmico. A conversa
desnorteia-me, afasta-me cada vez mais do meu propósito. Sinto um
profundo desalento durante o resto da refeição. Tudo o que oiço me
parece despropositado, mesquinho, de uma frivolidade que me incomoda. Quando a rapariga se
levanta para ir à casa de banho volto a olhá-la. A maquilhagem procura diluir a
banalidade, boca apagada, lábios tão finos que mal se distinguem do
resto do rosto, olhos espantadiços. O corpo, porém, hipnotiza, formas preenchidas
no busto e quadril, a cintura marcada por um cinto de duas voltas. Fala de
espiritualidade, mas é apenas matéria. O palavreado místico é um véu enganador,
a carne é a sua vocação, o corpo funciona como a armadilha de uma planta
carnívora.
2013/07/16
Sandra
Eu sentia-me
esmagado de humilhação, como é que lhe havia de falar? Quem é que disse que o
amor aproxima não sei quê? Não é verdade. Sou um homem experimentado – não é
verdade. Se eu amasse pouco Sandra ou não a amasse, era-me muito mais fácil
falar com ela, lidar com ela e com a irmã com quem quer que fosse dela, eu
livre e independente. Amar é pôr ao alto e ao longe, treme-se como diante de um
deus tresloucado. Amar muito é ter pouco de nós com que se possa ser gente.
Amar é ser desgraçado e eu era.
Para Sempre, Vergílio Ferreira
(Não pegava no Vergílio Ferreira há muito tempo. Que besta.)
2013/07/15
Aninhas e o beijo nipónico
Procurava
uma palavra. Sentia cansaço, fome, o dia findo lá fora. Escurecera de repente e
só o ecrã do computador brilhava no apartamento. Aninhas sentiu-se triste,
aflitivamente só. Minimizou uma janela, maximizou outra. Procurou o filme do
beijo nipónico. Deixou-se estar muito quieta a vê-lo. Duas jovens japonesas, de farda colegial, corpos óbvios, fecundos.
Trocaram algumas palavras e começaram a beijar-se. Um beijo húmido, secreto.
Aninhas baixou o volume para que os gemidos não se ouvissem no patim das
escadas. Depois, despiu a camisa e libertou-se do sutiã. Humedeceu os dedos e
tocou nos mamilos, sentiu-os firmes, cheios, teve vontade de os morder. Abriu
ligeiramente as pernas e meteu a mão dentro das calças. Não tardou a sentir um orgasmo silencioso, bom, incapaz, porém, de
suspender a realidade. Voltou a vestir a camisa, compôs o cabelo. Olhou em
volta, por todo o lado, sinais de rotina, os chinelos do marido, a taça de
gelado que o filho deixara em cima da mesa, os dois pretos de madeira que a
empregada insistia em colocar no rebordo da estante. No ecrã, as colegiais
japonesas continuavam a beijar-se. Aninhas deixou-se estar a olhá-las durante
algum tempo, novamente fria, corpo feito pedra. Levou a mão ao nariz e, na
ponta dos dedos, sentiu o seu cheiro, um cheiro adocicado, irritante,
previsível, a lembrar calor, pedaços de jagra escura, passeios cheios de lixo.
Ajeitou o corpo na cadeira e continuou a escrever.
2013/07/14
Coisas preferidas
(Ler em
igrejas, correr, fumar, beber, ver o João chegar, escutar-lhe a voz e
sentir-lhe o cheiro, cortar as unhas dos meus filhos, ler para os meus filhos,
cantar para os meus filhos, caminhar sozinha.)
Aninhas e a quiromante
Está acostumada aos
pequenos acidentes que por vezes acontecem. Mete os lençóis a lavar a noventa
graus e o edredão, volta e meia, tem de ir a limpar à lavandaria. Cada vez que
lá vai, Aninhas tem de se sujeitar ao sorriso da empregada, uma brasileira já
íntima da freguesia, sempre disposta a esquecer o serviço por dois dedos de
conversa. É uma mulher vivaça, muito afogueada dos vapores que se soltam dos
ferros com caldeira, esbagachada em vestidos justos, mostrando uma mamas
enormes, imensas, que parecem não ter fim. Mas a brasileira da lavandaria não é
só concupiscência exuberante: tem dons especiais, é uma espécie de quiromante.
Sagaz, dotada de uma intuição apurada, é capaz de ler a vida de uma pessoa a partir
de manchas e nódoas como outros a lêem das linhas das mãos e das borras de
café. O cheiro a bafio é sinal de não querer largar o passado. Punhos e golas
de camisa puídos revelam perseverança, desejo de alcançar uma vida monetária
desafogada. Nódoas salpicadas em toalhas de festa são sinal de afectos intensos
e espontâneos. Roupa amarfanhada, com pequenos rasgões nas costuras, mostram
inflexibilidade e desentendimentos. Uma coberta de cama, cheia de manchas
amareladas, revela frenesim no momento da separação dos corpos, é sinal mais
que evidente de exacerbação sexual. Da última vez que Aninhas levou a colcha a
limpar, a brasileira largou-lhe um sorriso retrincado e, depois de um instante
a chupar os dentes para tirar um pedaço de febra entalado entre os molares, foi
dizendo que as manchas já estavam muito entranhadas, da próxima vez, que trouxesse
a colcha no dia seguinte, esfregando logo com vinagre branco e álcool talvez a
coisa se compusesse. Continuou a chupar os dentes e, sem vacilar, entregou-lhe o volume plastificado. Aninhas
sentiu um estremeção no peito e jurou nunca mais ali entrar.
2013/07/11
Carepas
De costas, numa cadeira de rodas, uma mulher espera. Pela postura, a cabeça mole, caída, percebo que a deficiência não é apenas física. Entro na tabacaria e rapidamente a esqueço. Folheio revistas e jornais, escrevo o meu nome num bloco cheio de garatujas coloridas para perceber o traço de canetas e esferográficas. O poeta anda por ali a comprar jornais. Olhando-o, olhos caídos para o chão como se tivesse medo do mundo, lembro a pobreza discursiva da minha escrita. À saída, volto a dar de caras com a mulher na cadeira de rodas. Continua sozinha. Como se alguém ali a tivesse propositadamente abandonado. Sorri-me, um sorriso cheio de pureza e fealdade. Faltam-lhe vários dentes na boca torcida como um parafuso. Os olhos, velhos, estão metidos em covas escuras. Tem, e é isso que mais impressiona, o rosto coberto de escamas vermelhas. Umas carepas de sarna, de seborreia, de caspa, não sei bem do que são. Com uma mão muito branca, em forma de garra, a mulher arranca pedaços de crosta que ficam acumulados por baixo da sujidade esverdeada das unhas demasiado compridas. Desvio o olhar, agoniada. Imagino-me a cuidar de uma irmã, uma tia, uma filha assim. Talvez fizesse o mesmo. Abandonava-a na frescura climatizada de um centro comercial e ia à minha vida.
(Na tabacaria, foi com esse propósito que ali entrei, comprei um caderno. Quero escrever com liberdade sem que me acusem de egoísmo. Censuro-me bastante aqui.)
2013/07/10
Sal do deserto
Hoje,
à hora do almoço, deitei-me com um homem e lambi-o. Não gostei do homem nem do
sabor do seu suor, asséptico, com um ligeiro travo a bolor e medicamento. Na
casa de banho, enquanto me arranjava, bochechei a boca com água e cuspi. Como se estivesse no dentista. Ao olhar-me no espelho,
lembrei-me da rosa do deserto que a Cilinha, minha madrinha, costumava guardar
na cómoda do seu quarto. Feita de areia e sal, de uma cor muito bonita, misteriosa,
foi objecto que durante anos exerceu sobre mim um fascínio muito grande. Sempre que
visitava os meus padrinhos no apartamento de Benfica, corria ao quarto deles,
procurava a rosa do deserto e ficava a olhá-la. Depois encostava a flor de
pedra à boca para sentir nos lábios o sabor do deserto. Hoje, ao olhar-me no espelho, depois
de lamber a pele de outro homem, percebi finalmente ao que sabe o teu corpo: ao
sal do deserto.
2013/07/09
Linfoma
É doloroso ler o que escreves, explicou ontem a minha mãe ao
telefone. Escutei-a em silêncio e pedi-lhe desculpa. À noite, deitada na cama,
o Joaquim muito transpirado, enrolado nas minhas pernas, dei com esta passagem
no livro do Vergílio Ferreira : “Mentalmente pensei, bócio, linfoma, seria ele
ainda? Estava sentado no passeio, uma caixa de esmolas ao lado. Seria já um seu
descendente? Seria talvez um seu antepassado que viera vindo através de
gerações até chegar ali com o seu saco de pelicano suspenso do queixo.
Perguntei-lhe se ele era de Coimbra, ele disse-me o senhor compreende, lá já
ninguém me ajudava por já estarem habituados à minha desgraça. E eu compreendi.
Porque uma desgraça, como tudo, vai perdendo o ser com cada vez que se vê e o
ver lho come.” Li e percebi que a minha tristeza é tal qual o aleijão do
pelicano de que fala o escritor. De tão assumida, escancarada, exposta, perdeu
impacto, tornou-se banal. É simplesmente maçadora. Não devia impressionar ou
preocupar ninguém. Faz parte de mim.
Bárbara
Mas eu esperei infinitamente que você me não humilhasse, que percebesse que eu abrira uma porta e você não ficasse à porta. E eu pensei o que ele quer de mim? Poderá ele entender um corpo de mulher? Saberá ele a verdade de um seio, de uma boca, do sítio definitivo em que esse corpo se cumpre? Do sítio em que o animal tem o direito de existir? Ele vai beijar-me, pensei, vai conhecer as mãos com os meus seios, vai indagar do secreto do meu ser, da fonte do meu sangue e eu vou sentir que o seu amor também tem um corpo a acompanhar. Mas você não fez nada, nem sequer me beijou e eu tive asco e horror e desprezo por si.
Na tua face, Vergílio Ferreira
2013/07/07
Calor
Corpo atravessado na cama. Nu, suado, salgado, morto. O quarto
muito escuro. Fecho os olhos. Penso em punhos cortados, nos meus pés à beirinha
da linha do comboio, nas caixas de comprimidos guardadas no armário da casa de
banho. Não consigo evitar a tristeza, os pensamentos sombrios, a angústia patética.
A tentação é sempre grande. Tenho vontade de retalhar com golpes fundos, muito
dolorosos, o meu corpo. Mata-lo. Não o suporto na sua inapetência. Devia ceder
de vez à loucura. Deixar de brincar ao faz de conta. Talvez conseguisse
descansar. Dormir uma noite seguida. Chega o Joaquim, só de cuecas, óculos
escuros na cabeça. Deita-te em cima de mim, peço-lhe. Ele trepa e deixa-se
estar muito quieto como se compreendesse a essencialidade do gesto. Estás triste, pergunta. Estou, estou muito triste, respondo. Ficamos
assim, corpos sobrepostos, durante algum tempo, a ver se a minha tristeza passa. Costuma passar.
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