2017/01/09

Fortuna

A camisa aberta nas costas da cadeira, as calças vincadas em cima do assento, peúgas, cuecas, lenço e gravata pousados na camilha. Para além de escolher a roupa que o meu pai usaria no dia seguinte, havia uma outra tarefa que a minha mãe cumpria todos os dias antes de se deitar: deixava sempre posta a mesa do pequeno-almoço. Cinco canecas em cima da toalha plastificada, um termo com leite fervido, a pequena cafeteira italiana já pronta, o frasco do chocolate em pó, a manteiga, pão fatiado dentro de um saco de pano. Recordando a rotina desses dois gestos diários, percebo agora que a minha mãe não escolhia a roupa do dia seguinte e não deixava posta a mesa do pequeno-almoço para poder dormir até mais tarde. A minha mãe sempre se levantou muito cedo. Às seis da manhã, já estava de pé, enfiada no robe azul, preparando as marmitas, despertando os móveis da casa, dando início às rotinas, cuidando do nosso lar. Levantando-se tão cedo, poderia pela manhã escolher a roupa do meu pai e tratar do pequeno-almoço. Tinha tempo de sobra para o fazer. Suponho, porém, que a minha mãe gostasse de adiantar serviço. Mesmo que o pão endurecesse, sobretudo nos meses de calor, mesmo que a roupa escolhida na véspera para o meu pai não se adequasse ao tempo, aliviava-a a certeza de as suas obrigações estarem cumpridas. Ficava assim com tempo livre caso acontecesse algum imprevisto (não me lembro de alguma vez ter acontecido um imprevisto). Confortava-a saber que tinha o serviço adiantado, sentia-se mais confiante por saber-se organizada. Talvez até dormisse melhor. Desde que se aposentou do hospital, há mais de vinte anos, a minha mãe continua a repetir esses dois gestos antes de se deitar: arranja a mesa do pequeno-almoço e escolhe a roupa que no dia seguinte o meu pai usará. Na tristeza natural dos meus dias, estas recordações são jóias raras, a minha fortuna.