2017/01/11

Percevejos verdes

Depois do último internamento, há cerca de seis meses, passei a sofrer de insónia. Demoro muito tempo a adormecer. Acordo várias vezes durante a noite e fico às voltas na cama, à espera de que o sono volte. Sonho recorrentemente com a enfermaria onde estive internada. É um sonho estranho. As chapas do telhado, enferrujadas, têm buracos por onde entram pássaros e outros bichos. Os degraus da entrada, de madeira apodrecida, estão cobertos de ervas. As paredes, manchadas de tinta escura, parecem esboroar-se em caliça. Nas janelas há grades de ferro. O soalho é pardacento e áspero. As camas da enfermaria estão pregadas ao chão e, nos lençóis, manchados de urina, passeiam-se lindos percevejos verdes. A enfermaria com que sonho é muito diferente daquela, limpa e arejada, em que estive internada, mas, não sei por quê identifico aquele lugar com a enfermaria da Clínica de São José. Desperto cansada, como se tivesse caminhado durante muito tempo, o corpo moído, a cabeça a latejar, a boca seca.

Há algumas semanas, o meu amigo Eduardo convidou-me para ir lanchar a uma pastelaria antiga, com paredes de espelho e mesas cobertas de toalhas de pano. Queria saber de mim, como me sentia, se estava melhor. Enquanto comia um duchesse coberto de frutas, confessei-lhe que estava melhor, muito melhor, não alucinava há muito tempo, nem ouvia vozes, mas não conseguia dormir. Expliquei-lhe que não aguentava continuar assim, sentia um cansaço extremo, o meu desespero era de tal ordem que ponderava mesmo consultar um bruxo, um exorcista, enfim alguém que me ajudasse a dormir uma noite sossegada. Eduardo, o meu amigo, também é doente dos nervos. Nunca esteve internado, mas sofre ocasionalmente de ataques de ansiedade. Escutou as minhas queixas e riu-se do meu desespero. Depois contou que, apesar dos picos de ansiedade, não tinha qualquer problema em adormecer.
- Deitas-te e o sono chega? – perguntei com despeito.
- Não é bem assim, Ana. Tenho um truque para adormecer...
Quis saber que truque era aquele, talvez funcionasse comigo. Eduardo não tardou em revelar-mo. Todas as noites recordava um sonho que tivera. Não era um sonho alucinatório ou enigmático, desses que estimulam o pensamento e nos fazem procurar respostas sobre a vida. Tratava-se apenas de um lugar, um lugar tranquilo, que lhe trazia muita paz. Bastava fechar os olhos, imaginar-se nesse sítio e era imediatamente inundado por uma sensação de bem-estar.
- Estou debruçado no muro de um terraço. Lá em baixo, abre-se um oceano de águas claras, onde o sol bate com tal intensidade que me fere um pouco os olhos; no meio do mar há uma ilha. Nas encostas da ilha, as veredas serpenteiam entre pomares e jardins perfumados. Nos recantos da costa, as praias são de areia dourada e fina. São praias pequenas e desertas, nas águas transparentes notam-se as sombras dos peixes. Quero ir para aquela ilha, para aquele mar, mas para lá chegar, não te sei explicar por que razão, tenho de atravessar uma estufa degradada, suja e com vidros partidos. Na estufa há um banco de pedra antiga. É nesse banco que me costumo sentar antes de adormecer, fixando o horizonte onde parece terminar o mar, olhando a pequena ilha, entorpecido por memórias quentes e indefinidas.

Ouvi-o em silêncio e continuei a comer o duchesse coberto de frutas. Aborrecida, mudei de assunto. Não acho justo que Eduardo, que sofre apenas de ansiedade, tenha um lugar imaginário tão bonito e tranquilo, um lugar onde, esquecido dos seus problemas, descansa noites inteiras, e eu, doente desde os vinte anos, com tantos altos e baixos, sonhe apenas com uma enfermaria em ruínas, cada vez mais suja, cada mais escura. Da última vez que lá estive, os lindos percevejos verdes morderam-me a barriga das pernas e Nikita, o guarda, ameaçou bater-me se continuasse a falar com Ivan Dimitrich.