2017/01/02

Verbo irregular

Conduzia um pouco distraída. Conjugava em voz baixa o verbo crer. Irene, essa uma das suas particularidades, sabia conjugar todos os verbos, incluindo os irregulares. Eu cri, tu creste, ele creu, nós cremos, vós crestes, eles creram, dizia para si própria, embalada naquela antiga cantilena. Preparava-se para iniciar a conjugação no modo conjuntivo, o seu modo preferido, quando sentiu alguma coisa bater nas rodas traseiras. Parou o carro e saiu. Um pequeno rafeiro, de olhos assustados, gania dolorosamente na berma da estrada. O embate provocara-lhe uma ferida na cabeça. Dessa ferida escorria um sangue escuro e espesso que empapava o pelo macio. Irene olhou em volta à procura de ajuda, mas os poucos que passavam pareciam não dar-se conta da sua presença. Sentou-se no passeio e começou a fazer festas no animal moribundo. Não sabia explicar a razão, mas sentia-se subitamente tranquila, ali, sentada no passeio, o bafo morno do bicho nas suas mãos. Lembrou-se do tempo em que se fechava na casa de banho e batia com a cabeça na parede. Um vez, de tanto bater, fizera um golpe fundo que precisara de cinco pontos. O sangue escorreu nesse dia, escuro e espesso, e sujou o seu pijama. Era o tempo em que se afligia, vivia à beira do sono, à beira dos sonhos, à beira da morte. Apenas encontrava alegria nos abraços do filho mais novo e na contemplação absurda de prédios, ruas, jardins. Lembrou-se depois de uma palavra, cujo significado esquecia com frequência, mas com a qual embirrava desde que a ouvira na boca de uma mulher solene. Poema, notícia, conto em que aparecesse tal palavra e Irene, como se novamente escutasse o giz no quadro de ardósia, arrepiava-se toda. Continuou a fazer festas no pequeno cão, cada vez mais adormecido. Talvez esteja à beira do sono, à beira dos sonhos, à beira da morte, pensou Irene. Voltou à conjugação do verbo crer. Que eu creia, que tu creias, que ele creia, que nós creiamos, que voz creiais, que eles creiam. Entregou-se ao verbo como quem se entrega a uma oração.