2017/01/26

Trovoada

Começou a chover. Parece chuva de trovoada. Olho uma última vez a estatueta de porcelana. Com a ponta de um lenço de assoar, que humedeço com saliva, limpo as pequenas reentrâncias onde o pó se acumula. Pouso-a em cima da cómoda. Escuto passos que rangem no soalho do corredor. Já passa da meia-noite, a minha espera terminou. Mal me deito, a vivacidade do meu pensamento abandona-me, deixa-me numa fadiga que me torna as ideias confusas. Conheço esse adormecimento, desejo-o, nunca contrario a sua chegada. O meu marido entra no quarto. Parece não trazer pressa, anda devagar, e, ao contrário do que é habitual, alguma energia transparece no seu passo. A expressão do seu rosto também está diferente, descontraída, um sorriso aberto, olhos brilhantes, bochechas elevadas. O que tornará a sua passada mais enérgica? E o seu rosto animado? Talvez seja ainda a euforia do futebol que nele transparece, talvez as sobras dessa satisfação o tornem assim, revigorado, ágil. Senta-se na cama, mãos apoiadas no colchão, a olhar a janela. Deixa-se estar nessa posição durante algum tempo a escutar a chuva nas vidraças. Não diz nada, volta a sorrir, dá uma palmadinha na minha perna como que a querer partilhar comigo a sua satisfação. Depois de dar uma fungadela no spray que usa para as alergias, diz-me boa noite e apaga a luz. Não fecho os olhos. Gosto de olhar a escuridão, descobrir o que nela se esconde, vejo manchas irregulares, parecem lagartos gigantes, cobras gordas, serpenteando por ali. Quando um carro chega à praceta e o clarão dos faróis entra pelas frinchas dos estores, chega-me uma memória antiga, quase esquecida: estou deitada com a Violante num campo de ervas altas a adivinhar as formas das nuvens, divertimo-nos a encontrar coelhos, vacas, galos, algumas nuvens parecem objectos, outras parecem gente. Olha a D. Antónia, de marreca e tudo!, diz de repente a minha irmã e rimos com a descoberta. A recordação desse instante traz-me uma tristeza passageira, mas muito intensa, volto à infância, um tempo antigo em que fui feliz. Pouco a pouco, os meus olhos deixam de ver sombras alaranjadas, a escuridão cresce, só o coração luminoso da estatueta de loiça a quebra. A escuridão confunde. É na noite que o corpo do meu marido ganhará dureza. Escuto o ruído da sua respiração e, pouco depois, sinto o seu corpo voltar-se na minha direcção. 

Não perde tempo, os seus braços aumentam de volume, alongam-se, parecem ser capazes de dar várias voltas ao meu corpo. A sua respiração é cada vez mais acelerada, sinto o seu bafo na cova do meu pescoço. Lá fora, o céu desfaz-se agora em pingos grossos, a chuva estala nos vidros. O meu marido levanta-me a camisa de noite, as suas mãos tocam-me. Deixo que me tome. O meu corpo está aqui, na cama, à sua mercê, para que faça dele o que quiser. Um corpo é apenas um corpo, o meu fica aqui, daqui a nada, quando tudo acabar, venho buscá-lo para o lavar e tratar. Ausento-me: estar deitada na cama ou sentada na sala em frente do televisor ou na cozinha a lavar a loiça passa a ser igual. Tanto faz. Estou simplesmente deitada, sem fazer nada, à espera que isto acabe depressa. Mal me liberto do meu corpo sinto-me tranquila, cheia de silêncio. Pairo como um fantasma sobre o meu quarto, sobre a minha cama, sobre o meu corpo. Agora é a altura certa para me entregar aos meus pensamentos íntimos. Procuro o coração luminoso da estatueta de loiça. Aqui está, mesmo ao meu lado, uma pequena lágrima de luz capaz de quebrar a escuridão mais cerrada. El corazón de los novios alumbra la oscuridad, disse-me o homem naquela tarde e abraçou-me. Recordo o desconhecido de Ceuta, o armazém abafado, a realidade suspensa num abraço demorado. Um instante eterno, sem futuro, nem passado. Começou a trovejar. Continuo a ter medo de trovoadas, mentalmente, começo a dizer a oração a Santa Bárbara, só ela é capaz de apaziguar as tempestades que a natureza lança aos homens. O tempo parece alongar-se. Geralmente, em três, quatro minutos, tudo está terminado, mas hoje o meu marido não só intensifica a firmeza dos seus movimentos como parece querer prolongar o tempo que leva a satisfazer-se. Em movimentos repetidos, entra e sai, sai e entra, sempre na mesma persistência. O movimento parece não ter fim. Oiço os seus gemidos, sinto o cheiro do seu suor peganhento, a murchidão da barriga a roçar-me o ventre, tudo é desolador, mas descanso na perfeição dos meus pensamentos secretos. O meu marido transpira de esforço. Sinto-o dentro de mim, sinto as contracções dos músculos, o sangue a latejar. O meu marido está caído sobre o meu corpo, mas eu não estou aqui. Estou longe, muito longe, nos braços de um homem que me aperta. Consigo sentir o cheiro desse homem. Consigo sentir até a sua respiração no meu rosto. O calor desse abraço, clandestino, mas puro, perdura na minha vida. Escuta-se outro trovão, mais forte do que o primeiro. O meu marido larga por fim um grito descontrolado de dor e prazer. Sinto-me aliviada por tudo ter finalmente terminado. Assim que o meu marido resvala para o lado, acendo a luz. Levanto-me com cuidado, procuro a camisa de noite e visto o robe que está aos pés da cama. Caminho até à casa de banho para me lavar. O calor que se sente é cada vez maior, parece escorrer pelos azulejos, cobrir as loiças sanitárias, esconde-se dentro do pequeno armário com puxadores dourados. Abro a pequena janela da casa de banho, mas da rua chega apenas ar quente. Os trovões estão mais espaçados, cada vez mais longínquos, mal se ouvem. Olho-me no espelho. Noto o cabelo em desalinho, o meu rosto está tenso e, exposta à luz fosforescente da casa de banho, a minha pele mostra marcas evidentes de cansaço, as rugas parecem mais profundas, os olhos estão inchados, as olheiras, escuras, parecem borrões de tinta. Regresso ao quarto, os meus passos tornam-se leves, os pés mal tocam no chão. Vou sossegada. O cheiro da cera do soalho volta a confortar-me; a minha irmã sorri na moldura que está sobre o móvel da entrada e a Nossa Senhora, olhos moles de solidão, padece, como é próprio da sua natureza, no seu nicho de gesso dourado. Entro no quarto e sento-me na cama. Sinto-me esgotada, finalmente poderei deitar-me, fechar os olhos, adormecer, deixar o cansaço escorrer do meu corpo. Talvez já não o sinta ao acordar. O meu marido ressona baixinho, tem a boca ligeiramente aberta e a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas. Apago a luz. Lá fora, escuta-se apenas o vento nos plátanos da praceta. Depois da trovoada, a noite voltou a encher-se de silêncio.