2017/01/21

Mãos

Quando casou, por imposição nunca totalmente assumida de Ester, passou a ir à missa. De início, custou-lhe. Era baptizada, fizera a primeira comunhão, havia em si o habitual temor reverencial a Deus, assente em subordinação e obediência, mas até aí vivera à margem de ritos, sacramentos e missas. Ester pressentia a descrença da nora, a gente do sul vivia num estado de ateísmo primitivo, sem fé verdadeira. Fazia por isso muita questão de que o filho não perdesse os princípios e valores com que o educara. Quisera casar com aquela rapariga? Pois muito bem, mas não havia de o deixar viver na estrema da decência cristã, sem sentir o cheiro do incensário durante a bênção do Santíssimo e o conforto da confissão mensal.
Nunca perguntava a Maria se queria ir à missa, limitava-se a telefonar na véspera a dar instruções:
- A missa começa às onze. Estou pronta às dez e um quarto. Fazem o favor de não chegar atrasados. A Maria já sabe que gosto de chegar a tempo de arranjar um dos lugares da frente. – Dizia, avinagrada, pouco se importando se, com as suas palavras, ganhava de vez a antipatia da nora.

Os lugares das primeiras filas, de preferência junto do corredor central, eram os predilectos de Ester. Não só proporcionavam a visão desafogada do presbitério, forrado com madeiras nobres e azulejos de padrão relevado, como também permitiam que fosse das primeiras da assembleia a comungar. E isso é que era verdadeiramente importante para Ester. Chegava-se ao sacerdote com ar de reverência, estendia a língua e logo a pequena bolacha, translúcida de tão fina, se desfazia na sua boca. Era tal o consolo que sentia que a hóstia, ázima e insonsa, lhe sabia às iguarias da vida. Voltava ao lugar com o coração palpitante, cheio de alegria pela união a Cristo e ao povo de Deus, sobretudo, satisfeita pelo protagonismo assumido na celebração. Ficava por isso aborrecida se Maria e o filho se atrasavam e já só arranjava lugar nas filas laterais junto aos altares dos santos menores. Passava a celebração amuada, mexendo sempre no colar de contas de jade. Espreitava a nora, culpando-a intimamente por não ter chegado a tempo de arranjar assento condigno ao protagonismo a que se julgava com direito. Bufava: não conseguia ver o altar em condições, mal se apercebia do cortejo de entrada, e, pior, demorava muito tempo a chegar ao corredor central na altura da comunhão. Era obrigada a permanecer na fila e esperar a sua vez. Quando finalmente chegava perto do sacerdote e se dava conta do prato já meio vazio, estendia a língua para receber a comunhão, fingia um ar solene, baixava as pálpebras em sinal de recolhimento, mas a hóstia já não lhe sabia bem. Mais parecia um pedaço de pão duro. O seu coração palpitava de irritação.

Casada de fresco, Maria teve a prudência de nunca confessar à sogra que pouca ou nenhuma fé tinha. Sentia desconforto durante a celebração: tentava disfarçar a sonolência que sempre lhe chegava na hora da homilia, imitava os gestos da assembleia, dizia o pai-nosso com convicção, mas balbuciava tudo o resto em surdina. Incomodavam-na sobretudo as mãos, não sabia o que lhes fazer, acabava por pousá-las ao longo do corpo numa rigidez que causava dormência.