2016/05/31

Recreio

Quando o Ricardo ligou estava no recreio da escola do Joaquim a observar uma menina que lia uma história para outra meninas. O meu amigo queria saber se estava contente com o prémio atribuído ao Raduan Nassar. Há tempos, dois, três meses, falei-lhe, entusiasmada, da minha descoberta: descobrira por acaso "Menina a caminho e outros contos" numa livraria da Baixa e, por influência do João Pedro, lera "Um copo de cólera". Olhei o recreio da escola. As meninas que escutavam a história usavam vestidos de alças, a menina que lia estava descalça e tinha uma saia de padrão florido. A literatura, sobretudo os prémios literários,  pareceram-me um assunto irrelevante. Disse-lhe que não. 

Odeceixe

Em Leiria, enquanto esperava pela hora do julgamento, pernas estendidas ao sol, li outro conto da Lucia Berlin. Estou rendida à sua escrita. “Dor fantasma” fala sobre envelhecimento, demência, velhas senis que se masturbam, velhos que sentem as pernas que já não têm, de um pai que não sabe amar, de uma filha que espera palavras simples que nunca chegarão: gosto de ti, és minha filha e, independentemente das tuas escolhas, do teu sucesso, amar-te-ei sempre. Fiquei paralisada. Sei-o há muito. Escrevo por causa do meu pai, do amor e da mágoa que sinto, para lhe mostrar que valho alguma coisa. É uma fraca razão para se escrever. Corro a contar-lhe se saí uma crítica ao livro (merdoso livro), exactamente como, em adolescente, no liceu e na faculdade, fazia com as notas. Contive o choro e imaginei que deve ser bom chorar no ombro de alguém. No ombro de um pai. Quando o meu pai morrer hei-de escrever sobre a melancia que se partiu em Odeceixe. 

Ana e Andrea




2016/05/29

Contenção

O Reinaldo veio jantar cá a casa para me ajudar com o IRS. Lembrando-me de que era um dos seus pratos preferidos, fiz rancho para o meu ex-marido: enchidos, grão, massa, as verduras cozidas em muita água com uma pitada de bicarbonato de sódio para avivar a cor. Foi um truque que a minha sogra me ensinou. A minha sogra definha num caixão, transforma-se em pó, nada, mas as folhas de repolho, com as suas nervuras, ganharam um tom vibrante, intenso, muito bonito. Enquanto cozinhava, de pé, livro aberto na bancada da cozinha, cigarro a arder no cinzeiro, li um conto da Lucia Berlin. Ontem, na feira do livro, comprei um livro de contos da Carson Mccullers e outro da Eudora Welty. Já não compro romances, só livros de contos. O conto tem o tempo exacto, contenção. É isso que procuro na literatura: contenção. O meu ex-marido comeu com prazer, repetiu, elogiou-me a mão para a cozinha. Com a sua ajuda, ultrapassei o calvário da entrega anual da declaração fiscal. Bebemos duas garrafas de vinho, conversámos, rimos ao lembrar a minha histeria no barco pirata do Zoomarine. À saída, andava ainda a Madalena a preparar a mochila para amanhã, pedi-lhe que me abraçasse. “ Que se passa, Nita?”, perguntou e envolveu-me com os seus braços enormes. “Nada”, respondi e entreguei-me ao braços do gigante. 

Letra miudinha

O Joaquim é o rapaz dos cadernos. Tem um caderno das flores, um caderno das folhas, um caderno dos desenhos, um caderno das histórias e, há três dias, descobriu  um caderno que enfeitou com brilhantes autocolantes que a minha mãe trouxe de Goa. É o seu diário. Todas as noites, já cansado, enfiado por baixo de edredão, só se vê a sua linda cabeça cheia de caracóis, escreve longos textos sobre o seu dia numa letra miudinha que, quando a espreito, me dá vontade de chorar. Como me atrevo, pela manhã, aos pensamentos mais sombrios, mais desesperados? O amor aos meus filhos, só esse, é absurdo, paradoxal: salva-me e condena-me. Explico-lhe que não precisa de contar detalhadamente o que acontece em cada um dos seus dias, pode escrever apenas uma frase sobre o que mais o marcou, a comida sensaborona do refeitório, uma brincadeira no recreio, as participações disciplinares do Sandro, um episódio do Mundo de Gumball. Olha-me demoradamente e contrapõe: “Mas assim não é um diário, mãe. É outra coisa qualquer”.  

2016/05/28

Água



2016/05/27

Sichuan

Fiz o pedido ao homem das longas unhas afiadas: frango frito com amêndoas para a Madalena, galinha com castanhas para o João, chop-suey de porco para o Joaquim, uma garrafa de vinho branco para mim. Esperei encostada a uma palmeira artificial. Enquanto lia a ementa, espantosa a quantidade de pratos, o restaurante vazio encheu-se de turistas chineses. Gente ruidosa e alegre, mulheres de cabelos frisados, crianças gordas, homens feios, duas velhas quase carecas. Deviam ser de Sichuan que é a única província da China que conheço. Sentaram-se em mesas redondas, de centro giratório. Um homem sentou-se sozinho numa pequena mesa. O homem fez-me levantar os olhos da ementa. Chamou-me a atenção, não só pelo corpo robusto e musculado, pouco usual nos asiáticos, mas também por trazer na cabeça um insólito boné preto com dois chifres. Nunca o tirou. Sozinho, afastado do grupo, excluído, o minotauro olhava fixamente para uma rapariga sentada entre as velhas carecas.

Passado pouco tempo, ainda só tinham chupado gomos de laranja e sorvido ruidosamente um caldo escuro, os turistas chineses, incluindo as duas velhas quase carecas, levantaram-se e saíram porta fora. A rapariga, ao passar por mim, sorriu-me. Senti nela o cheiro que senti na turista alemã na Sé de Évora. Olhando-a, perguntei-me se, na cama, miaria como uma gata. As chinesas dos filmes pornográficos miam sempre como, se em vez de mulheres, fossem gatas. O minotauro começou a comer. O tempo passou, dez minutos, quinze, até que o homem das longas unhas afiadas trouxe o meu pedido. Ofereceu-me três chupa-chupas e uma pequena porção de hóstias de camarão. Na rua, a caminho do carro, olhei à procura do grupo de turistas chineses. Imaginei que estivessem à porta do restaurante a tirar fotografias. Não estavam. Aliás não estavam em parte nenhuma. Chovia na diagonal e a luz pareceu-me irreal. Senti, como sinto muitas vezes, estar dentro do sonho de alguém. Meti uma hóstia de camarão na boca e voltei para casa.

2016/05/25

Favos de mel

Uma luz branca, intensa, ilumina o rosto da minha filha. Na bancada, o Sr. Orlando enche o molde com uma pasta lilás. O protésico tem um nariz feio, redondo, inchado. É igual ao nariz do bêbado que, nos dias da consulta de psiquiatria, às sextas-feiras, encontro na Avenida de Paris. O bêbado causa-me repulsa e os dois sem-abrigo que, mais adiante, pedem à porta do Pingo-Doce também. Apesar da miséria, da solidão, até da loucura, não sou capaz de sentir compaixão pelo bêbado ou pelos sem-abrigo da Avenida de Paris. Não sei se quero sentir compaixão. De que serve a compaixão inconsequente e transitória que sentimos pelos excluídos da vida? A compaixão é um sentimento menor e, no entanto, e nisto reside a minha mesquinhez, desejo que os outros sintam compaixão de mim. Quando saio do consultório do psiquiatra quero apenas caminhar, sentir prazer por colocar um pé em frente do outro, observar a estrutura de ferro das portas dos prédios da Avenida de Paris. Favos de mel. Atravesso a rua para não ver os indigentes da cidade, sobretudo para não sentir o cheiro que os seus corpos liberta.

2016/05/24

Saxofone



- Mãe, por que ouves sempre a mesma música?
- Porque me faz lembrar o João Pedro.
- É por isso?
- É. O João é o saxofone do John Coltrane.
- Mas faz-te infeliz.
- Sim, é verdade.
- Odeio esse homem.
- Eu também. 

2016/05/23

Tazio

Quando se debruça para receber a moeda, apoiando a mão transpirada no vidro, pergunto-lhe quantos anos tem. “Faço vinte e um na próxima semana.”, responde e, ignorando o meu sorriso, a sedução espelhada nos meus novos Clubmaster, segue entre os carros de mão estendida. Usa, como sempre, calças justas e camisola de alças. Em vez dos habituais ténis, traz umas sandálias de couro. Espreito pela janela do carro para lhe ver os pés.  Certa vez, deitei-me com um homem mais velho, bonito, bom amante, tive dois orgasmos em pouco mais do que uma hora, mas, quando se levantou, vi uns pés feios, deformados, com dedos esguios, compridos, encavalitados uns nos outros, grandes joanetes. Não voltei a encontrar-me com esse homem apesar de, durante algumas semanas, me telefonar para marcar novo encontro. Sempre que nele pensava, a primeira imagem que me vinha à cabeça era a dos seus monstruosos pés. Imaginava-me na cama sendo pisada por aqueles pés. Decido que se Marina tiver pés bonitos, condizentes com a beleza do seu corpo, na próxima semana, quando fizer anos, ofereço-lhe um exemplar de “ A morte em Veneza”. Debruço-me pela janela, mas  só lhe vejo os calcanhares.

Dudamel

2016/05/22

Alcáçovas

De Évora a Alcáçovas o caminho faz-se por uma estrada quase deserta. As bermas estão floridas: giestas, cardos roxos, azedas, papoilas. No céu limpo voam andorinhas e cegonhas. Os campos, ondulações suaves e verdes, pontilhados de azinheiras e grandes pedras, guardam memória do vento e da chuva. Conduzo devagar apesar de ter pressa de chegar. Quero prolongar a volúpia que sinto perante tanta beleza, preciso de tornar o caminho mais longo. O Joaquim reclama. Tem fome. Atiro uma maçã para o banco de trás e penso que às vezes a vida é uma fantasia maravilhosa. Ou uma risota mesquinha. Ainda bem que o rapaz bebeu até cair de podre. Ainda bem que encontrou a inglesa. Ainda bem que a heroína lhe fez parar o coração. Morto, não dará mais desgostos à mãe e à avó, sossegarão a partir de agora, uma e outra vestidas de preto. Hão-de recordá-lo menino, gordo, de mãos papudas e joelhos tortos, a fazer os trabalhos de casa na mesa da cozinha. Sim, repito para mim própria, e reparo num corvo pousado num tronco velho que solta um grito estridente, ainda bem que o rapaz morreu. Se não tivesse morrido, não estaria aqui, na estrada que vai de Évora a Alcáçovas, para ir ao seu funeral. 

2016/05/18

Magnetismo



(Marina, a linda malabarista dos semáforos, é parecida com a rapariga do video. Nova, muito nova, cheia de vida. Durante o jantar expliquei aos meus filhos que decidi ser lésbica. O pequeno ficou triste, os mais velhos riram-se.)

Marina

Voltei a encontrar Marina, a malabarista do semáforo da Avenida EUA. Mudou de poiso. Por isso não a vi durante meses. Pára agora num cruzamento perto do aeroporto. Acho-a diferente. Deixou crescer o cabelo. Cai-lhe, liso e preto, pelas costas. Engordou um pouco, mas o peso favorece-a. Voltou a ter formas, rabo redondinho, as mamas empinadas balouçam livres na camisola de alças. Já não usa o ridículo gorro vermelho. Qualquer coisa se alterou na rapariga dos malabares prateados. Não sei bem o quê. Já eu, no cruzamento perto do aeroporto, como no semáforo da Avenida EUA, continuo presa à beleza que, sem saber, Marina traz à minha vida. Quando ela avança de mão estendida entre os carros, segura, sinto uma estranha languidez, tenho vontade de lhe tocar.

2016/05/17

Canasten

Ia pela Avenida de Berna a pensar em certo violoncelista e em certa clarinetista da Orquestra Gulbenkian. O violoncelista faz-me lembrar “ Os dias de abandono”, o conto da Elena Ferrante que mete a um canto a sua restante obra. A clarinetista, tenho quase a certeza, foi minha colega no ciclo preparatório e chama-se Paula. Naquele tempo, parecia uma macaca, era a melhor aluna e tinha uma cadela amarela que se chamava Popsi. As voltas que a vida dá. A caminho do concerto, pensando na minha resolução de fim de ano, a única que tomei, senti-me feliz. Uma vez por mês, já não é mau, vou à Gulbenkian. Escolho um concerto, leio alguma coisa sobre os compositores e, para que os meus ouvidos se habituem, escuto as obras. Assisto aos concertos com um deslumbramento intenso, iniciático, ingénuo, palpita-me o coração, os finais apoteóticos arrebatam-me. Nesses dias, em que me sento sozinha numa das cadeiras do auditório da fundação, adio o momento em que volto para casa, faço o jantar, varro o chão e cuido dos meus filhos. Isso também me agrada. Continuei a andar. Olhei para o pespontado dos sapatos novos e esqueci a tristeza das últimas semanas.

Foi então, já nos jardins, que uma comichão intensa se fez sentir precisamente no meu epicentro, que é, como quem diz, na minha vagina. Apesar da aplicação de pomadas, dos comprimidos vaginais enfiados com um longo aplicador, volta e meia, a candidíase volta. Veio fulgurante, desta vez. Um prurido crescente, explosivo, vindo das entranhas mais fundas, parecia ser capaz de rebentar comigo. Apressei o passo, entrei no edifício. Nas escadas que descem para as casas de banho, duas mulheres, casacos pelos ombros, colares de pérolas sobre blusas caras, conversavam. Ao lado, num grupo animado, uma outra mulher deu uma gargalhada afectada e ajeitou o cabelo num gesto de sedução. Passou, sorumbático, quase cadáver, um dos fundadores do PSD. Imaginei-me no meio daquele gente, desesperada, a rebolar no chão, a meter as mãos dentro das calças, a coçar-me freneticamente como se tivesse pulgas, chatos, carraças. Comecei a rir. Sou uma deprimida que ri muito. O riso, em vez de me aliviar, acicatou a comichão. Desci as escadas, pulando degraus, enfiei-me na casa de banho e acabei com aquele tormento.

2016/05/16

Efeitos da liberdade

Eu pertenço a uma família de profetas aprés coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico. No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado. 
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo. No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza: 
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que… 
– Oh! meu senhô! fico. 
– …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos… 
– Artura não qué dizê nada, não, senhô… 
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. 
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. 
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. 
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu. 

Machado de Assis, crónica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de Maio de 1888, uma semana após a abolição da escravatura no Brasil

2016/05/14

Charulata



Charu esquece a mágoa do cuco e escreve sobre a sua aldeia. 

2016/05/13

Dezassete segundos

Há uma aldeia em Goa que se chama Nuvem. Nessa aldeia, vive Fidélia, uma sinhá-moça que herdou duas fazendas em Paraíba, uma com quinhentos escravos, outra com setecentos e cinquenta. Fidélia demorou precisamente cem dias a atravessar o mundo para chegar a Nuvem. Não sabe por que veio, talvez para se livrar de Tristão e da herança, mas gostou da aldeia e ficou. Todos os dias acorda de madrugada, só para ver as mulheres sair da pequena igreja, depois de assistirem à primeira missa. Àquela hora do dia, a neblina matinal cobre o alçado do templo e as mulheres, apesar das pernas feias, corpos franzinos, com os seus longos cabelos negros, parecem-lhe estranhas fadas. Fidélia volta para casa às dez horas. Senta-se numa cadeira de baloiço e come o balchão de camarão que Rosa lhe prepara. Às vezes, depois de comer o balchão, sentindo ainda a boca ardente, passeia no jardim da casa. Observa as árvores, as aves e as flores. Espanta-se por serem tão diferentes das da sua infância. À tarde, quanto todos se deitam, Rosa, Maria e Pancrácio, o escravo que trouxe de Paraíba, Fidélia escuta os concertos de Brandenburgo, sobretudo o terceiro concerto, sobretudo o segundo andamento do terceiro concerto. Tem apenas dezassete segundos. Sentada na sua cadeira de madeira rosa, na mais completa solidão, no silêncio que nunca termina, Fidélia, a sinhá-moça de Paraíba, passa os dedos na boca ardente. Pensa então que a vida devia ser assim: ter exactamente dezassete segundos, ser um início, um suspiro, um curto lamento. Fidélia atravessou o mundo, viu fadas sair da igreja da aldeia, comeu balchão de camarão e escutou o segundo andamento do terceiro concerto de Brandenburgo. Não tem mais nada para fazer. Sente um enorme cansaço por ter tanta vida para viver.

Sexta-feira

Os mais novos estão com o pai. Não sei por onde anda o mais velho. Arrumei a casa ao som das Variações Goldberg. Desde que a Graça deixou de vir (não tenho como pagar-lhe o ordenado), a casa enche-se lixo. Vejo sujidade em toda a parte, manchas nos tapetes, bolas de cotão nos cantos, sarro nas loiças sanitárias, gordura nas juntas, pó nos livros, nódoas nas colchas, e assusto-me. A sujidade é um sinal do meu desnorte. Detesto sujidade. Consegui limpar os quartos, as casas de banho e a cozinha a tempo de, durante a vigésima segunda variação, a minha preferida, parar para fumar um cigarro. Escrevi um pequeno texto baseado na Fidélia do Machado de Assis e saí para comprar o jantar: um pacote de batatas fritas, duas carcaças e uma garrafa pequena de vinho branco. Voltei a casa. Troquei as Variações Goldberg por Stabat Mater de Pergolesi. Abri uma carcaça, que recheei de batatas fritas, e enchi um copo de vinho morno. Senti-me imediatamente cheia de paz. Talvez Deus me habite. O gato veio roçar-se nas minhas pernas. Peguei-o ao colo e sussurrei “amorzinho querido”, exactamente como fazia aos meus filhos quando eram pequenos. 

Fanfarra

Às vezes, antes de adormecer, imagino o meu funeral. Para além dos colegas de trabalho, conheço pouca gente. Tenho três amigos. A minha família é pequena. A ideia do meu caixão descendo às profundezas da terra, com meia dúzia de pessoas em redor, mais do que me entristecer, humilha-me. Sei bem que o sucesso de qualquer acontecimento social, festas de aniversário e casamentos, é avaliado pela quantidade de pessoas que a ele assiste. Não consigo escapar desta lógica meramente estatística e por isso sinto um enorme desconforto ao imaginar o meu funeral. Os funerais com muita gente, de tão animados, quase não parecem funerais. O morto é alguém que se cumpriu em vida. Fez muitos amigos, foi amado, querido, respeitado. Nos grandes funerais há sempre reencontros. As pessoas sentem alegria. Conversam. Falam do passado, dão novidades, mostram fotografias dos filhos e dos netos. Há uma máquina de cafés e pratos com esses de limão. Coroas e palmas amontoam-se ao lado do caixão. Perante tanta variedade, às vezes, encontram-se conjugações ousadas de cores e flores. Gosto de grandes funerais. Já um funeral com pouca gente é triste. O morto é um falhado. Os que decidiram acompanhá-lo, por osmose, também. Não nego: gostava de ter um grande funeral, com muita gente a assistir e, se possível, com uma fanfarra a acompanhar. Um funeral igualzinho a um que vi passar em Curtorim, coisa bonita de se ver.

2016/05/12

Amor



Fiquei a olhar durante muito tempo para a fotografia. Desejei estar por baixo do guarda-chuva, à porta da biblioteca, colada ao corpo do João Pedro, sossegada, imóvel, a ouvir a chuva e os batimentos do seu coração. Toquei-lhe com a ponta dos dedos, beijei os olhos cansados e mudei a página da revista. 

Carcinoma

“Tenho a cara cheia de tumores. Tiram um e aparece logo outro…” diz a minha tia enquanto, sentada no sofá, continua a olhar para a televisão. Sento-me ao seu lado, pego-lhe nas mãos e beijo, com vagar, cada uma das suas cicatrizes. 

2016/05/10

Outra Ana

Atrás da casa amarela, havia um terreno com uma nogueira e um poço. Pelo porte, copa frondosa, folhas largas, de verde vibrante, a nogueira exercia grande fascínio sobre mim. Era diferente das árvores da aldeia: oliveiras, sobreiros, azinheiras, figueiras de ramos tortos. Sentada à sua sombra, apanhando nozes ainda verdes ou olhando-a simplesmente, sentia-me outra menina. Sempre, desde cedo, desejei ser outra Ana. A nogueira, por extraordinário que pareça, tinha esse poder mágico: libertava-me de mim própria, transformava-me, ainda que por breves instantes, noutra criança. Também o poço me atraía. Espreitava a medo para dentro. Acostumados à claridade, os meus olhos demoravam a habituar-se à escuridão. Conhecia, de as ouvir à minha avó, histórias de homens e mulheres que se tinham atirado ao poço. Imaginava um rosto defunto boiando nas águas fundas. Ofélia. Pré-rafaelitas. A ideia de encontrar um morto assustava-me, mas, ao mesmo tempo, excitava-me. Que bom seria quebrar o tédio das férias, largar a correr pelas ruas da aldeia, aos gritos, anunciando uma tragédia! Porém, quando os meus olhos finalmente se habituavam à escuridão, para além das águas paradas e escuras, viam apenas lagartixas e rãs. Sentia uma pontinha de desilusão e levantava os olhos na direcção da nogueira.

Kurt Vile



Then Saturday came around and I said "Who’s this stupid clown blocking the bathroom sink?"

2016/05/09

Sim

Para além de exaltar muito rapidamente uma certa emotividade que, com o passar dos anos, tenho aprendido a conter, o álcool tem em mim um efeito devastador. Bebo até cair para o lado. Sozinha ou acompanhada. Não sou capaz de parar. No domingo, de ressaca, deitada na cama, senti que tudo em meu redor me oprimia: os livros em cima da mesa-de-cabeceira, a luminosidade frouxa a entrar pelas frinchas do estore, o mau cheiro dos lençóis, a memória das conversas da véspera. Afinal quem é a actriz europeia mais bonita? Por volta do meio-dia, depois de vomitar na banheira, percebi que não conseguia fazer o almoço para os meus filhos. Voltei a sentir-me a pior mãe do mundo. Telefonei ao Reinaldo e pedi-lhe que levasse os miúdos a almoçar fora. 
- Que se passa? 
- Estou doente. 
- Estás doente?
- Estou. 
- Com o quê?
- Estou de ressaca. 
O meu ex-marido chegou pouco depois. Entrou no quarto, fez-me uma festa na cabeça e perguntou se precisava de alguma coisa. Disse-lhe que sim. 

2016/05/05

Lata Mangeshkar




Moto-serra

Quando a vi no quintal, cabo amarelo, lâminas aguçadas e dentadas, assustei-me. “Para que querem vocês uma moto-serra? Mete medo!”, perguntei à minha mãe. “Ora, Ana Clara! Uma moto-serra faz muita falta nesta casa!”, respondeu e, de chapelinho de palha na cabeça, continuou a apanhar as ervas que insistem em crescer em redor da camélia. A camélia é a grande frustração da minha mãe. Plantada há muitos anos, a estúpida da planta, como que querendo provocá-la, não ata nem desata, mantém-se pequena, torta, sem graça, tem apenas meia dúzia de folhas enceradas. Nem uma vez floriu. Voltei a olhar para a moto-serra pousada no escalracho. Toquei-lhe a medo como se, em vez de um objecto, de um ser vivo se tratasse, um cão, um leão, um tubarão, enfim um animal capaz de me surpreender com uma dentada violenta. Dei dois passos para o lado e imaginei-me com a moto-serra nas mãos. Que faria eu com aquele extraordinário objecto? Não seria capaz de cortar a cabeça de ninguém. Isso não. Infelizmente não há quem viva sem cabeça (é pena!) e descreio firmemente da pena de morte. Mas, se impune, desconfio que, conforme o grau de embirração e repulsa, a gente que eu cá sei, cortaria braços, pernas, pés, dedos, línguas, orelhas e outros pedúnculos. Também cortaria a pequena camélia da minha mãe e, no seu lugar, plantaria um diospireiro. Senti-me animada por uma certa selvajaria bucólica. Imaginei dióspiros maduros, de polpa doce, rebentando na minha boca. Imaginei também uma multidão de amputados, decepados, pernetas, manetas, castrados, descendo lentamente o monte do moinho. Dei mais dois passos e afastei-me da moto-serra.

(moto-serra é mais bonito do que motosserra.)

2016/05/02