2016/05/29

Contenção

O Reinaldo veio jantar cá a casa para me ajudar com o IRS. Lembrando-me de que era um dos seus pratos preferidos, fiz rancho para o meu ex-marido: enchidos, grão, massa, as verduras cozidas em muita água com uma pitada de bicarbonato de sódio para avivar a cor. Foi um truque que a minha sogra me ensinou. A minha sogra definha num caixão, transforma-se em pó, nada, mas as folhas de repolho, com as suas nervuras, ganharam um tom vibrante, intenso, muito bonito. Enquanto cozinhava, de pé, livro aberto na bancada da cozinha, cigarro a arder no cinzeiro, li um conto da Lucia Berlin. Ontem, na feira do livro, comprei um livro de contos da Carson Mccullers e outro da Eudora Welty. Já não compro romances, só livros de contos. O conto tem o tempo exacto, contenção. É isso que procuro na literatura: contenção. O meu ex-marido comeu com prazer, repetiu, elogiou-me a mão para a cozinha. Com a sua ajuda, ultrapassei o calvário da entrega anual da declaração fiscal. Bebemos duas garrafas de vinho, conversámos, rimos ao lembrar a minha histeria no barco pirata do Zoomarine. À saída, andava ainda a Madalena a preparar a mochila para amanhã, pedi-lhe que me abraçasse. “ Que se passa, Nita?”, perguntou e envolveu-me com os seus braços enormes. “Nada”, respondi e entreguei-me ao braços do gigante.