2016/05/25

Favos de mel

Uma luz branca, intensa, ilumina o rosto da minha filha. Na bancada, o Sr. Orlando enche o molde com uma pasta lilás. O protésico tem um nariz feio, redondo, inchado. É igual ao nariz do bêbado que, nos dias da consulta de psiquiatria, às sextas-feiras, encontro na Avenida de Paris. O bêbado causa-me repulsa e os dois sem-abrigo que, mais adiante, pedem à porta do Pingo-Doce também. Apesar da miséria, da solidão, até da loucura, não sou capaz de sentir compaixão pelo bêbado ou pelos sem-abrigo da Avenida de Paris. Não sei se quero sentir compaixão. De que serve a compaixão inconsequente e transitória que sentimos pelos excluídos da vida? A compaixão é um sentimento menor e, no entanto, e nisto reside a minha mesquinhez, desejo que os outros sintam compaixão de mim. Quando saio do consultório do psiquiatra quero apenas caminhar, sentir prazer por colocar um pé em frente do outro, observar a estrutura de ferro das portas dos prédios da Avenida de Paris. Favos de mel. Atravesso a rua para não ver os indigentes da cidade, sobretudo para não sentir o cheiro que os seus corpos liberta.