Tive uma tia, chamada Lucília, que se matou. Atirou-se do sétimo andar de um prédio de Benfica. Era uma mulher apagada, de silêncios prolongados, com uma vida aparentemente calma. Enviuvou cedo de um funcionário das finanças e, por isso, vivia com uma filha na Avenida do Uruguai. Tratava da casa, ajudava na educação dos netos, fazia as compras na praça, preparava o jantar. Sempre em silêncio. Coleccionava a teleculinária e deitava-se depois de ver a telenovela. As manhãs de domingo, passava-as no cemitério, tratando da campa do marido. Levava-lhe flores frescas. Cravos aninhados em nuvens fofas de gipsófila. Lavava o verdete do mármore com um paninho embebido em vinagre. Gostava muito de frutas cristalizadas. Quando a visitávamos no apartamento da Avenida do Uruguai, a minha levava-lhe um cartucho de frutas comprado numa mercearia de Moscavide. No dia em que se matou, fez uma canja de galinha e deixou os anéis em cima da cómoda, para que ninguém lhos tirasse. Sempre estranhei a sua morte por ser uma mulher simples, com uma vida simples, de hábitos simples. Não sei porquê, há em mim o sentimento absurdo de que a infelicidade e o desespero são prerrogativas dos sensíveis, daqueles que se ocupam da espuma, do supérfluo. Suicidam-se os escritores, os pintores, as poetisas. Os que esperam demais da vida. O suicídio exige um grau de sensibilidade, discernimento e sofisticação que a minha tia Lucília não tinha.