Um homem tira moedas de um saco de plástico e enfia-as nas caixas de esmola que se espalham pela igreja. As caixas são antigas, de madeira escura, com letras brancas a indicarem o propósito do gesto caridoso. Há-as para todos os fins. Para o culto. Para os irmãos necessitados. Para seminários. Para o jornal paroquial. Para a casa sacerdotal. Para o contributo penitencial. Há, também, uma caixa para as almas. É o que está lá escrito. Mesmo por baixo da ranhura onde se depositam as moedas e as notas, ao lado do cadeado, está escrito, a branco, “Almas”. Cada vez que o homem enfia uma moeda, os anjos dos vitrais largam as liras, as harpas, os violinos, e estremecem com o ruído que quebra o silêncio tumular da igreja. O homem pára. É então que um som cavo e arrastado surge das profundezas e fica a retinir nas paredes do templo. Ninguém parece estranhar. As mulheres que rezam o terço continuam a sua ladainha. O homem de bigode texano continua a rondar as velhotas de cabelo azul e violeta. A senhora da mantilha de renda branca, que se senta sempre na primeira fila, continua a contar a Deus as minudências da sua vida. Veio do mercado e as laranjas que traz no saco de plástico deixam no ar o cheiro invernoso dos laranjais do Arealão. As laranjas eram sumarentas, pouco doces e deixavam-me as mãos tisnadas. Olho, quieta, o anjo verde dos vitrais e lembro-me da prima Matilde, de lenço preto na cabeça, o xaile cruzado sobre a bata florida. Vivia perto dos laranjais, que cresciam em terrenos areentos, trazia no corpo entranhado o cheiro do fumo da lareira e tinha um filho, o Luis Carlos, rapaz moreno e bonito, dado a angústias profundas que, volta e meia, passava temporadas no hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Chamava-me priminha e eu gostava que ela me tratasse assim. Deixo os laranjais do Alentejo e volto à igreja onde habitam todos os anjos da cidade. O som cavo, medonho, arrasta-se por mais alguns segundos. São as almas penadas que lançam gritos desesperados das profundezas do purgatório. Exigem que o homem deposite algumas moedas na sua caixa. Só assim Deus poderá requisitar os seus processos ao celestial arquivo e reavaliá-los com vista a lhes franquear, ou não, a entrada no Paraíso.
(Na sua mensagem para a quaresma de 2008, o santo padre convida os católicos à ascética prática da esmola. E fala dos pobres. Ai, os pobres…)
(Na sua mensagem para a quaresma de 2008, o santo padre convida os católicos à ascética prática da esmola. E fala dos pobres. Ai, os pobres…)