2008/03/17

Sombra

Estou numa casa que não é minha. É uma casa muito grande. Fica no coração da cidade. Deambulo por uma sala rectangular feita de recantos e nichos. Os candeeiros de mesa têm abajours de franjinhas. Lançam pedaços de luz frouxa pela sala. Caminho até uma estante que cobre, de alto a baixo, uma das paredes. Olho para os livros que se amontoam nas prateleiras. Invejo esta sala, esta casa e esta imensidão de livros. Caminho na direcção do terraço. Há algumas cadeiras e espreguiçadeiras espalhadas. A cidade espalha-se em casas baixas que se encavalitam umas nas outras como peças indisciplinadas de um dominó. O casario é branco. Aqui e ali, vejo abóbadas. As ruas são sinuosas e esconsas como as de uma medina árabe. Ao longe, recortado pela cidade, obediente e manso, vê-se o mar. Já vi este mar noutros sonhos. Até já o experimentei. Já entrei nele. Como se entrasse dentro de alguém. No meu sonho Lisboa tem mar. O caudal do rio aumentou. Inchou. Furioso, galgou a outra margem. De um trago, engoliu as terras do sul. Transformou-se em mar. Encheu-se de sal. Serenou. Deixou-se habitar por sardinhas, medusas, cavalos marinhos, carapaus, robalos. Há uma quietude morna derramada por todo o lado. Não se ouve nada nem ninguém. O dia morre. O crepúsculo tem cor e cheiro. É alaranjado. Cheira a hortelã, a peixe seco e a fruta madura. Melancias, figos e laranjas. Lisboa é o que não é. Ou é o que já foi. Ou o que poderia ter sido. Uma cidade de deserto e mar. Preenchida por abóbadas, cata-ventos, minaretes, fontes de água fresca e praças de sombras. Estou dentro do sonho, no terraço desta casa, que não é minha, e penso: quero ficar aqui, para sempre, suspensa neste tempo e neste lugar.