2008/03/05

Escápulas

Uma mulher de casaco azul, que escolhia laranjas, fez-me parar em frente da frutaria da avenida. O casaco era de um azul profundo, muito intenso, e envolvia-a da cabeça aos pés, aconchegando-lhe o corpo pequeno. Velha, usava os lábios finos esborratados de vermelho e o cabelo era fofo e branco como enchimento de almofadas. Nos pés trazia uns sapatos rasos de verniz branco. Um homem assomou-se de dentro da loja e cumprimentou-a. Reparei que tinha a pele muito vermelha e que o couro cabeludo estalado lançava pedaços de dermatite seborreica pelo pulôver azul-escuro. Pesou as laranjas e continuou a falar com a mulher do casaco azul. Olhei-os com a certeza de que seria incapaz de comprar e comer aquelas laranjas. Cada vez que metesse à boca um gomo havia de me lembrar das caspas gigantes do homem da frutaria. Despediram-se. Quando a mulher do casaco azul começou a andar ouviu-se um chocalhar de ossos. Um ruído estranho, de ossos secos, ocos, sem tutano, ossos mortos, batendo uns nos outros. Reparando no meu espanto, a mulher abriu o casaco azul e mostrou-me um esqueleto de ossos quase translúcidos, rendilhados e porosos, muitos certinhos e ordenados. Disse que ainda tinha medula nos ossos planos, sobretudo nas escápulas. Pronunciou a palavra “escápulas” muito devagar. Mastigou cada sílaba, mostrando-me os dentes certinhos da dentadura. Estavam manchados de baton vermelho. Es-cá-pu-las. Depois sorriu, fechou o casaco e continuou a andar.