2009/05/04

Eva

Entra uma rapariga na carruagem. Olho-a. Tem umas sandálias calçadas, tipo colibri, de plástico bege, daquelas baratas que se compram no Paraíso do Calçado e cheiram a cholé quando se descalçam. Morena, com umas covas nos olhos e a sombra do buço a marcar-lhe o rosto, a rapariga não terá mais de vinte anos. O cabelo é enorme, escuro, exageradamente comprido. Deve chegar-lhe ao rabo. Faz lembrar uma Eva ignota. Vê-se que tem orgulho no seu cabelo. Não pára de lhe mexer. Faz nós nas pontas. Pouco depois, desmancha-os para logo de seguida fazer outros. Quando se cansa dos nós, começa a enrolar o cabelo em volta do pescoço. Como se fosse um lenço. Ou um colar. Ou uma corda para se enforcar. Ou uma serpente de língua bífida que, sibilante, lhe oferece uma maçã. Por fim, deixa de brincar com o cabelo e arremessa-o para trás das costas. Olha em redor e dá um estalido com a pastilha elástica que mastiga. Tem noção de que o seu cabelo dá nas vistas e isso alegra-a. O que a rapariga não percebe é que é a feiura do seu cabelo-serpente que prende o olhar de quem com ela se cruza. É um cabelo baço, sem brilho, sem volume, com uma ondulação incipiente. Tenho pena da Eva que masca pastilha elástica na carruagem do metro que vai para Odivelas. Se tivesse uma tesoura à mão cortava-lhe o cabelo, tornava-a banal, livrava-a dos olhares alheios.
(Novembro 2007)