2009/05/11

Ferrugem

A boca ficou a saber-me a ferrugem, disse Laura enquanto se vestia. Depois abriu a janela e cuspiu. Olhou as árvores do quintal. A nespereira estava carregada de frutos podres e, perto do muro, um limoeiro oferecia-se a quem passava na rua. Laura puxou a saliva e cuspiu outra vez antes de fechar a janela. O silêncio espalhava-se pelo quarto, tão denso e baço que parecia poder cortar-se às fatias. Virou-se para o espelho e começou a escovar os cabelos. Tinha-os longos, muito lisos e brilhantes. Sabes, o sangue é que costuma saber a ferrugem, continuou sem esperar resposta. Por cima da cómoda um gato de loiça olhava-a com olhos moles de preguiça. Só ele parecia escutar as palavras de Laura. A mulher apanhou o cabelo e prendeu-o com um elástico. Tirou da mala um desodorizante. Isso geralmente sabe-me a ervas frescas esmagadas, disse enquanto vaporizava as axilas com um cheiro mentolado. Olhou em redor à procura dos sapatos. Descobriu um por baixo do reposteiro e outro aninhado por baixo da cama, entre sacos de plásticos e bolas de cotão. Calçou-se. Os pés denunciavam-na sempre. Mais do que a voz ou a forma quadrangular do tronco. Por mais que pintasse as unhas, por mais que amaciasse a pele com cremes e óleos, tinha pés ossudos, pés de homem. O professor do 4º direito, para a arreliar, quando a ouvia queixar-se da masculinidade de tais membros, dizia-lhe que ela tinha pés de deus grego, pés de Hércules, de Jasão, de argonauta, de Ulisses, uns pés iguaizinhos aos de Cristo na cruz. Ria-se o professor e quando ria abria muito a boca e mostrava a glote que tinha a forma perfeita de um sino. Laura não achava graça. Se pudesse entraparia os pés como as chinesinhas de antigamente. Ainda por cima calçava o quarenta e quatro. Era uma chatice para arranjar sandálias de salto alto.
(Julho de 2007)