2012/01/31

Aninhas e a escala ordinal

Assim que se interessava por um homem tratava de arranjar tempo para analisar o desejo, procurando medi-lo com a máxima precisão que conseguia. A escala que usava era simples, constituída apenas por três graus: desejo muito, desejo assim-assim, desejo pouco. Essa medição era essencial porque lhe permitia saber que fazer para retirar da relação o maior proveito possível. Se errasse na graduação do desejo, as consequências, não sendo catastróficas, podiam deixar-lhe no corpo cicatrizes de cerzidura leve, contínua. Quando o desejo, existindo, era de fraca intensidade, uma onda luminosa pouco ampla, de baixa frequência, luz de vela bruxuleando na escuridão, Aninhas abreviava o processo de sedução, saltava passos, insinuava-se, passava por frontal e disponível, passados dois ou três encontros, deitava-se com os homens que assim desejava. Tinha pouco ou nada a perder. A expectativa em relação a tais homens não era muita, a desilusão, se a houvesse, seria passageira, não deixaria marcas, nem sangue pisado.

Quando o desejo era assim-assim, nem carne, nem peixe, quando a análise não lhe permitia medição exacta, por imprudência, acabava por o tratar da mesma maneira: em pouco tempo, acabava na cama desses homens sem grande entusiasmo ou ilusões. Era quando o desejo a esmagava, ao ponto de com ele acordar, com ele se deitar, quando o desejo entrava nos seus sonhos, quando era intenso e sublimado, que Aninhas procurava preservá-lo. Não o queria morto. O único modo que conhecia de preservar esse desejo era não o concretizar, não cair no engano do corpo e do prazer. A não concretização do desejo exigia muito da sua parte: dissimulação, controlo absoluto, habilidade na mentira. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, o desejo acabaria por desaparecer, mas acreditava que assim o prolongava; rentabilizava-o.

Só uma vez se deitara com um homem que desejava muito. O seu desejo era primitivo, masculino, espontâneo, crescia como um tumor, sentia as metástases, um desejo que cansava, mas bom. Durante meses, de manhã à noite, viveu com essa vontade que a comia por dentro, corroendo vasos como ferrugem porosa, largando uma poalha invisível que se espalhava pelo seu avesso. Dava banho ao filho mais novo, esfregava a cabeça do pequeno com champô de camomila; fecha os olhos, meu amor, para não te arderem, dizia-lhe, e, nesse instante, imaginava as mãos daquele homem descendo pelo seu corpo. Estremecia, mas não se culpava. Cortava batatas em cubos para um assado de peixe e, enquanto os envolvia em colorau, agradecia o sossego da casa, as crianças em frente do televisor, pasmando pela tarde; no sossego da cozinha, junto à bancada de mármore, sentia o peso do corpo que desejava. O desejo nunca a largava, arrancava-a da monotonia, permitia-lhe a fuga. Era o desejo que lhe dava prazer.

Desejou esse homem com fúria. De tanto o querer, por assim o querer, julgou que aquele desejo nunca se perderia. No dia em que finalmente concordou em encontrar-se com tal homem, numa pensão com vista para o casario da baixa e manchas de humidade no tecto, ao subir as escadas esconsas, atapetadas por uma passadeira de linóleo, com vasos de cóleos e avencas subindo por ali fora, sentiu vontade de chorar. O homem era um amante competente. Tratou-a sem urgência, pôs de lado a vocação animal que todos os homens transportam, interessou-se pelos seus sinais, esforçou-se para lhe dar prazer, quando se veio, fê-lo com muita discrição, em surdina, como se a não quisesse melindrar. Aninhas aninhou-se no arco do seu braço e percebeu que o desejo, intruso que durante tanto tempo lhe preenchera o vazio, se fora embora. Quando, na noite seguinte, se deitou na sua cama, procurou-o e não o encontrou. Ficara sem desejo e sem prazer. Sem nada.