2012/01/02

Vereda

Em Corturim, no coração da aldeia, há uma mercearia muito pequena onde tudo se vende. Entra-se e são tantos os cheiros e as cores, tamanha a confusão, que é preciso um minuto para a gente se habituar àquela escuridão cheia de sombras, perceber onde ficam as farinhas, os noodles que se cozinham sem saber e sem arte, o açúcar muito grosso que adoça sem nunca tornar terna a boca, as velas brancas estão ali, vêm num pacotinho de papel pardo que traz a imagem de uma santa amachucada pela solidão das peanhas e dos altares, o óleo em vasilhame está aqui, há fraldas descartáveis, caldos knorr, rolos de papel higiénico, batatas fritas, tudo o que o desenvolvimento traz e se precisa; sobretudo, mais do que a localização das mercearias, é preciso tempo para ignorar os sinais de intimidade que por todo lado se espalham, brinquedos de criança pelo chão, um bastão de críquete e dois gormitis adormecidos, o altar a Parvati, consorte de Shiva, deusa-mãe, que amou com pecado, bendito o fruto do seu ventre materno, o pilão enegrecido onde a mulher do homem da loja prepara massalas para o almoço, a portinhola de fitas que dá para um desvão de felicidade. Ao lado da mercearia, a paragem de riquexós é ponto de concentração dos homens da aldeia, pedem um copo de feni que levam para a rua, ficam ali no suão da monção ainda adormecida a comentar as notícias de quem chega de Margão, Pondá, das praias cheias de mulheres israelitas e russas, muito brancas, turistas quase despidas, de biquíni, que adormecem ao sol e acordam feias, escuras, tão pretas. No centro da aldeia, perto da paragem dos riquexós, fica a estação de correios, é um casebre quase abandonado, sem qualquer traço distintivo, sem sinal da instituição, sem marca administrativa. A primeira vez que lá entrei foi na companhia da Michele, casada com o meu primo Moreno que é bonitão, mesquinho e usa, na canícula de Janeiro, durante as missas de domingo, casacos de veludo cotelê, cor de mostarda, para mostrar que fugiu à boçalidade da aldeia. Ia a prima, nessa primeira vez, a mando da minha tia Maria, matriarca da casa de Maina, pagar a conta da electricidade. Estranhei haver duas filas, uma de homens, outra de mulheres. Olhou-me a prima, muito grávida e triste, nem sempre os casamentos arranjados são felizes, meteu o porta-moedas debaixo do braço, e perguntou se em Portugal não era assim, ali, na fila dos correios, como nas dos bancos, nas carruagens dos comboios, havia necessidade de separar os homens das mulheres para evitar o voraz instinto masculino, predadores que tocam mães, filhas e esposas, até das castas superiores. É em frente da estação dos correios, onde o desejo se separa em duas filas, obedecendo a uma moral frágil e moribunda, pouco antes da curva onde fica a loja das bebidas onde o meu pai compra grades de kingfisher, para mim, que as bebo de madrugada no terraço, na quietude da minha noite indiana, que nasce a vereda de sombras. A vereda de sombras leva a uma casa de um rosa esmaecido, um tom a fazer lembrar combinações de senhora, antigas, das que se usavam junto ao corpo e guardavam desejos proibidos. A casa tem um jardim pequeno, bem tratado, há duas jaqueiras perto do portão, tem beirais trabalhados e um alpendre que sossega quem chega. Nessa casa cor-de-rosa, vive um homem velho, de cabelo branco. Tem a beleza das coisas antigas.

(preparei a encomenda do Rafael e escrevi-lhe uma carta.)