2011/03/07

Memórias

Não sei o que deu à minha irmã para emprestar o livro da Isabela Figueiredo ao nosso pai. No sábado, quando entrei no escritório, reparei no livro em cima da secretária de fórmica que veio de Lourenço Marques. Perguntei-lhe se estava a gostar de o ler. Enfiado no roupão, as pernas encostadas ao aquecedor a óleo - um goês velho nunca se acostumará ao frio lisboeta - fez um esgar de nojo e disse que não. Não estava a gostar mesmo nada. Não se pronunciou sobre as memórias partilhadas, não explicou se as aceitava ou rejeitava. O que o enojava no livro eram as asneiras. Cona. Foder. Palavras proscritas, escritas vezes sem conta, até à náusea. A minha filha, que viera comigo cumprimentá-lo, assim que ouviu falar do asneiredo, arregalou os olhos e sorrateiramente pegou no livro. Pôs-se a lê-lo à socapa. Não vais ler este livro, pois não, mãe?, perguntou indignada. Não, claro que não, expliquei-lhe. Era lá capaz de ler um livro cheio de asneiras. Ou de ver um filme pornográfico. Ou de apanhar uma bebedeira. Ou de dormir com um estranho. Jamais. Sou uma mulher seríssima. Sou a tua mãe. À noite, mal deitei os miúdos, larguei a menina Cunegundes (cada vez que lhe leio o nome, imagino uma orgia de cunilínguos, profundos e certeiros, no melhor dos mundos possíveis) e peguei no caderno de memórias coloniais. A Isabela Figueiredo escreve muito bem, sem pretensões ou artifícios, desfiando memórias dolorosas sem tornar a dor banal. Mas, lido o livro numa noite, de uma assentada, percebi uma coisa. A minha África é diferente da África dela. Não encontro, nas memórias da minha família, desprezo ou ódio. Nenhum. Só culpa. A minha África é uma história que cada um de nós carrega em silêncio, sem nunca lhe mexer. Porque magoa. É uma história com apenas quatro personagens: o jovem goês; a negra, menina-mulher, sozinha na beira de um caminho de poeira vermelha a chorar, sem homem e sem filho; a enfermeira, a mais bonita do lar da rua da Sociedade Farmacêutica, que se casou com o goês e fez seu o filho da negra; o menino sem memória, mulato, que se aninha no colo da enfermeira portuguesa e lhe pede “mamã, faz-me cabelo de branco”.