2011/03/01

Verdes Anos

Acordo ao som da canção.
Deitada na cama, a claridade da manhã a entrar pelas frinchas dos estores, com um nó a estrangular-me a garganta, uma tristeza a entrar-me devagar pelos orifícios do meu corpo, recordo. Ilda, Júlio. O tio de Júlio, sapateiro. A entrada da reitoria com os painéis do Almada Negreiros. O céu cinzento a ameaçar com nuvens espessas. O chão do café coberto de beatas e serradura. As avenidas novas da cidade, rasgadas em paralelas e perpendiculares. Os prédios altos, tão altos, quase a tocar o céu. A casa onde Ilda trabalha. O senhor, a senhora, a sobrinha dos senhores. O passeio de domingo até ao aeroporto por entre caminhos poeirentos, quentes, de pinheiros, arbustos, gargalhadas, cumplicidades. Ilda e Júlio felizes. Os aviões, lá ao fundo. A cidade, a preto e branco. Os seus limites visíveis, palpáveis como se tivessem sido traçados a lápis por um guardião gigante. Aqui acaba a cidade, o alcatrão, o fumo, as paredes, os muros, a confusão. E aqui começa o campo, o verde, o azul, as hortas, o regato, ali uma casa, animais, árvores. Recordo, sobretudo, o baile nesse local mágico e único que reconheci mal o vi através dos olhos do Paulo Rocha. O tecto pintado, por mim, imaginado em tons de ocre e laranja, os desenhos indefinidos, esboroados, a escadaria da entrada com os degraus gastos, as arestas de mármore arredondadas pelo uso, o pátio interior, por cima, um rectângulo branco de céu. As janelas enormes por onde, naquela tarde, distante e melancólica, entrava uma luz fraca, crepuscular. Naquela tarde, ouvia-se esta canção. Esta canção, infinitamente bela e triste, que anunciava o fim.