2011/03/24

O livreiro é um homem alto, tímido, pouco dado a cortesias. Nunca se ri. Fala pouco e não se alonga em conversas com os clientes. Diz apenas o que julga indispensável a uma transacção transparente e rápida. Só lhe notei uma alegria breve quando lhe pedi o auto de natal pernanbucano e, numa outra ocasião, quando comprei uma edição muito velha, estafada, das palavras poupadas. Eu, tão contente, por ter encontrado aquele exemplar, todo escrevinhado por uma sara teotónio, depressiva quase de certeza, que encheu de poemas lacrimosos os espaços em branco, folhas de plátano e de amieiro secas entre as páginas, bilhetes de cinema e de comboio também lá guardados, um livro assim, vivido, é difícil de encontrar, que os livros chegam-nos mortos e somos nós que lhes damos vida, eu, tão feliz por encontrar aquele livro e ele, o livreiro, a dizer “ela é óptima, não é?”, eu a perceber a pergunta, mas a topar-lhe os olhos muito frios, gelados, totalmente inexpressivos, a boca dizia uma coisa e os olhos não diziam nada, como se boca e olhos pertencessem a pessoas diferentes. Acho que não lhe respondi. Paguei-lhe e fugi. Vê-se que o livreiro é um homem que gosta de livros, há-de ter um rol de leituras invejável, sólido, mas, coisa estranha, não o consigo imaginar a falar com entusiasmo daquilo que lê. Hoje, não sei que se passou, o livreiro pareceu-me outro homem. Continuava de poucas palavras, mas movimentava-se de um modo diferente como se se tivesse libertado de qualquer coisa que lhe pesava no corpo. Quando lhe pedi o livro da Lídia Jorge, veio comigo até à bancada, ligeiro. Quando lhe pegou, percebi-o, afagou-o, sentindo a maciez da capa aveludada. E, durante aquele tempo, cantarolou alto uma canção do Ney Matogrosso. Os olhos continuam a ser um poço, mas, lá no fundo, atrás da escuridão, há um ninho de musgo onde vive um pássaro azul.
(havia de falar do país e tal e coisa, que anda tudo numa azáfama de comentários e brilhantes dissecações, mas o país interessa-me pouco e o livreiro interessa-me muito.)