2011/05/13

Bia e o mar (2)

Correu, pois, a menina à mãe que estava a fazer uma sopa de tomate para o almoço. Já fizera o refogado de tomate, cebola, alho. Já fritara o toucinho. Já lhe juntara água para fazer o caldo. Estava naquele momento a escalfar os ovos. A entrada repentina da Bia na cozinha, aos gritos, pedindo-lhe para ir à praia, posso ir, não posso?, posso?, deixe lá!, fê-la bater os ovos com mais força na borda do tacho, abriram-se duas gemas que se derramaram em fios. Acabou por ceder perante a insistência da filha. Apareceu-me à porta, muito encolhida, molengona, como costume, vestida de preto, a perguntar se a companhia da Bia não incomodava...

Chegámos à praia devia ser quase quatro horas. É uma praia pequenina. O areal estende-se entre duas arribas. É uma praia de rochas, algas, de caranguejos pretos espojados ao sol, onde há sempre barcos de carga na linha do horizonte e se vê, ao longe, o casario de Sines e as chaminés da central eléctrica. Fica perto da rotunda onde a prostituta anã, na torreira do sol, aguarda a chegada dos velhos de boina que a levam para o pinhal e a deitam na caruma. Reparei que a Bia se deixou estar, durante muito tempo, a olhar o mar. Abeirei-me dela. Explicou, então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que era a primeira vez que estava perto do mar. Já o vira de passagem, da estrada, quando fora a um casamento a Vila Nova, mas nunca estivera assim tão pertinho. Perante a minha surpresa, tentou justificar. O meu pai trabalha na oficina a semana toda e, ao domingo, gosta de jogar às cartas no café. A minha mãe não gosta da praia. O egoísmo dos pais da Bia aborreceu-me. De que serve ter um filho e não lhe mostrar o mar? Ou a noite? A aldeia fica a vinte quilómetros da costa e a Bia, nos seus dez anos, nunca vira o mar. A mãe nunca largou o parapeito da janela, o pai nunca largou a oficina, o irmão nunca despiu a farda para a levarem a ver o mar. Olhei a Bia com admiração e uma pontinha de inveja porque, ao contrário de mim, terá memória do momento mágico em que tocou no mar. Ficou a tarde toda dentro de água e eu de vigia com medo de tanto afoitamento. Só saiu para comer a sandes de presunto que a mãe lhe mandou para o lanche. Comeu-a a fugir, a tiritar de frio. Depois, voltou a enfiar-se na água, como se o mar lhe pudesse fugir, como se fosse coisa passageira, um acidente na sua vida.

(a Bia gostou do mar e o mar, tenho a certeza, gostou muito da Bia.)