Encontro a mulher uma vez por ano na festa de aniversário de um sobrinho. Não pode ter filhos, tem o ventre seco, o bucho mirradinho, o interior cheio de peçonha. Todos os anos, se lamenta da má sorte, partilha técnicas de fertilização, queixa-se dos preços dos tratamentos. Este ano, à falta de filho, trouxe à festa uma cadela petit, focinho esborrachado, impecavelmente tratada, cão aristocrata, finíssimo, que já vi aquela raça em telas barrocas de tintas estaladas, aninhada nos braços leitosos de rainhas e duquesas. Chamou Margaret ao bicho. Corre a cadela Margaret com os miúdos pelos relvados. A mulher do ventre seco zela por ela com amor de mãe. Nunca a larga. Chama “Margaret!”, esganiçando a voz e levando a língua ao palato numa cambalhota atrapalhada que o nome estrangeiro obriga. Abre os braços à cadelinha quando a vê chegar, espavorida, língua rosada de fora. Explica aos meninos que a bicha está cansadinha, precisa de descansar. Limpa-lhe o focinho e as patas com toalhitas perfumadas.
Observo e penso e penso assim: mais lindo que o amor entre raças só o amor entre espécies. Uma coisa enternecedora. Varro o horizonte à cata da minha prole. O mais novo galopa. Trota como um potro. Já esfolou os joelhos, já rompeu as calças, já comeu folhas e formigas, já escorropichou duas garrafas de minis que encontrou abandonadas, ficou a plateia de mães horrorizada, ai que o menino se perde, coitadinho, e a mãe não lhe diz nada, desgraçada. O mais velho joga à bola a um canto do jardim e ensina palavrões aos primos mais novos. A minha filha está a quatrocentos quilómetros e, expliquei a quem por ela perguntou, despacha-me com três frases quando lhe telefono. Está tudo bem. Não te preocupes. Beijinhos, mãe. Olho a plateia de mulheres. Estão sentadas em cadeiras de plástico; comem folhadinhos de salsicha, bebem bebidas coloridas. Não dão por isso, mas trazem o corpo estafado. A maternidade cansa e mói em silêncio. É como um veneno que se bebe sem se dar conta. Há nelas uma felicidade genuína, uma maternal plenitude de confiança e experiência que me aborrece até à náusea. Muitas, olhando-me e à mulher da cadelinha, hão-de achar a vida madrasta, o destino muito vil e cruel: eu, displicente, deveria ser a dona da cadelinha aristocrata; a mulher do ventre vazio, amorosa, amável, tão disponível para participar nas tertúlias femininas sobre receitas da bimby e pediatras, deveria ser a mãe dos meus filhos. Compunha-se um bocadinho o mundo e fazia-se justiça na tarde de domingo.
Observo e penso e penso assim: mais lindo que o amor entre raças só o amor entre espécies. Uma coisa enternecedora. Varro o horizonte à cata da minha prole. O mais novo galopa. Trota como um potro. Já esfolou os joelhos, já rompeu as calças, já comeu folhas e formigas, já escorropichou duas garrafas de minis que encontrou abandonadas, ficou a plateia de mães horrorizada, ai que o menino se perde, coitadinho, e a mãe não lhe diz nada, desgraçada. O mais velho joga à bola a um canto do jardim e ensina palavrões aos primos mais novos. A minha filha está a quatrocentos quilómetros e, expliquei a quem por ela perguntou, despacha-me com três frases quando lhe telefono. Está tudo bem. Não te preocupes. Beijinhos, mãe. Olho a plateia de mulheres. Estão sentadas em cadeiras de plástico; comem folhadinhos de salsicha, bebem bebidas coloridas. Não dão por isso, mas trazem o corpo estafado. A maternidade cansa e mói em silêncio. É como um veneno que se bebe sem se dar conta. Há nelas uma felicidade genuína, uma maternal plenitude de confiança e experiência que me aborrece até à náusea. Muitas, olhando-me e à mulher da cadelinha, hão-de achar a vida madrasta, o destino muito vil e cruel: eu, displicente, deveria ser a dona da cadelinha aristocrata; a mulher do ventre vazio, amorosa, amável, tão disponível para participar nas tertúlias femininas sobre receitas da bimby e pediatras, deveria ser a mãe dos meus filhos. Compunha-se um bocadinho o mundo e fazia-se justiça na tarde de domingo.