2009/06/30

Mimetismo

Descia as escadas de serviço quando uma sombra se atravessou à minha frente. Uma mancha de tamanho incerto, veloz, correu pelos degraus abaixo, movendo-se com perícia, sem estranhar o espaço, sem temer o confronto. Ouvi uns passitos leves e um chiar que parecia um riso. Fiquei paralisada. À escuta. Até que os ruídos pequenos cessaram. Percebi que a mancha me esperava mais abaixo. Imaginei-a monstruosa, gorda, uma cauda enorme, uns dentes a arreganhar-me o descaramento. Senti palpitações, falta de ar, o medo amarinhando pelo corpo acima, como se fosse uma osga, um lagarto, uma centopeia. Saí das entranhas do edifício. Abri a porta de par em par. Com um certo dramatismo. Entrei no átrio onde duas rapariguinhas das companhias de seguros aguardavam o próximo elevador. Traziam a roupa muito justa ao corpo, unhas de gel pintadas com duas cores, sandálias de cunha baratas que hão-de soltar um cheiro nauseabundo ao final do dia. Uma delas, percebendo o meu desdém, arreganhou-me uma dentola medonha. Pareceu-me que chiava. Olhei para a outra. Vi-lhe uma cauda agrilhoada nas cuecas fio dental que se mostravam através da transparência de umas calças brancas. Abafei o grito que me saiu das goelas. Sustive um vómito que me veio à boca. Voltei a entrar nas escadas de serviço.