2009/06/17

Necrofilia

Um rapaz beijava uma rapariga, ontem, pela tarde, na estação do Rossio. Um beijo longo e egoísta. A rapariga, muito alta, de ancas largas, vestida de preto, deixava-se beijar. Tinha os olhos fechados, os braços caídos, a boca aberta para que a língua do rapaz entrasse e a habitasse. Parecia feita de basalto. O corpo rijo, imóvel, abandonado. Uma morta de boca aberta, ausente, pensando no último fim-de-semana, de sol e mar, ou na próxima frequência de psicofisiologia e genética (tinha ar de caloira de psicologia). O rapaz, pelo contrário, empenhava-se naquele beijo. Agarrava a rapariga com ambas as mãos. Parecia temer que lhe fugisse. Procurava encaixar-se no seu corpo de pedra. Queria encontrar uma posição que fosse cómoda, adequada, confortável. Para, então, desfrutar os efeitos colaterais do beijo: o coração acelerado, os arrepios de prazer, a leve intumescência do pénis, a alforria dos desejos mais secretos, jamais declarados, a doce certeza do amor correspondido. Estiveram naquilo durante muito tempo. O rapaz beijando a rapariga. A rapariga deixando-se beijar. Quando o comboio chegou, a rapariga entrou. Cá fora, o rapaz acenou-lhe e lançou um olhar comovente, muito meloso e patético. A rapariga sorriu-lhe do outro lado do vidro e respirou de alívio.
(As mulheres são falsas e parvas. Os homens são só parvos. Acreditam em tudo. Nunca lhes passa pela cabeça o óbvio: são, quase sempre, incompetentes para amar.)