2008/02/26

Alaúde

Descia eu a avenida entretida a olhar os plátanos jovens, que já se cobrem das primeiras folhas, quando topei com uma colega do liceu. Estuguei o passo. Tudo nela continuava a transpirar a tristeza da sua adolescência: a permanente feita para dar corpo ao cabelo ralo, os dentes encavalitados a afunilarem-lhe o rosto, a insuportável monotonia dos castanhos no vestir, o castanho-escuro da saia a destoar do castanho-azeitona do casaco e do castanho outonal dos sapatos, o mesmo olhar de bicho assustado, que se esbofeteia sem remorsos e sem piedade. Tinha um pai autoritário que deixava papelinhos amarelos espalhados pela casa a lembrar as obrigações de recato, decência e empenho, próprias de uma rapariga da sua idade. Deixei-me ficar a olhá-la. Pouco depois, ainda eu me aninhava no conforto da maldicência, vi passar, do outro lado da avenida, um magnifico rabo com forma de pêra, descomunal, enorme, farto em carnes descaídas. A dona do rabo bamboleava apressadamente as nalgas, espartilhadas numas calças de ganga muito justas, afastando-as para longe de mim. Atraem-me os rabos grandes em forma de pêra, em forma de alaúde. É a atracção pelo grotesco do corpo. Acontece-me o mesmo com a magreza extrema das anoréticas e a feiura excessiva de certos pés. Hesitei entre seguir o rabo em forma de pêra ou deixar-me ficar ali a olhar a minha colega do liceu, tão pindérica no seu sobretudo castanho-azeitona. Tanto hesitei que, quando olhei em busca do rabo gigante, já não o vi. A vida está cheia de decisões difíceis que, muitas vezes, nos exigem rapidez e segurança. Sou incapaz de tomar tais decisões. Fogem-me os rabos em forma de pêra e o resto também.