Escrever sobre o real. Sobre o irreal. Sobre os sonhos. Sobre o que imagino. Sobre o que é. Sobre o que não é. Sobre o que nunca será. Sobre a Pensão Imperial. Sobre passadeiras de linólio acastanhadas. Sobre a mulher de bata azul que se move numa cozinha onde há um aparador de madeira nacarada, com naperões de fio grosso e fruteiras de plástico colorido, dispostas como se fossem troféus de coisa nenhuma. Escrever sobre o homem novo, de calções e chinelos, que, entre vasos de plantas de folhas largas, sob uma clarabóia de luz, repara o lambril de uma escadaria. Uma poalha de gesso cobre-lhe as mãos e os pés.
Escrever sobre o homem indiano que no bulício quente, efervescente, da cidade, numa cabine telefónica, gritou num linguajar que se assemelhava a inglês: "you won´t fuck her again!". O amor transformado em cólera. A raiva a sair-lhe da boca em forma de palavras. A raiva a pairar sobre a cidade. "You won´t fuck her again!". A espalhar-se pela praça como se fosse leite derramado. Ferve. Transforma-se em espuma. Sobe. Transborda. Cobre a placa e os bicos do fogão. Transforma-se, depois, numa nata pegajosa e amarelada. O amor transformado numa nata pegajosa e amarelada. A raiva do homem indiano a perder-se avenida fora, tocando os transeuntes que saem dos bancos, das companhias de seguros, dos escritórios de advogados, das lojas caras, das repartições públicas, das correctoras.
Escrever sobre a mulher que às segundas-feiras, pelo crepúsculo, se cruza comigo no metro do Marquês. Os lábios finos pintados de vermelho escuro. A cara coberta por uma base escura para esconder as nódoas e imperfeições do rosto. O olhar incerto. Inseguro. O cabelo muito comprido. Preso com um gancho amarelo. Uma mulher-homem. Ou um homem-mulher. Ainda não sei. Ainda não descobri. Tenho sempre vontade de lhe tocar. Ou de lhe falar. Escrever sobre a outra mulher que ontem se sentou ao meu lado no comboio. As pernas cobertas de pelos pretos como se não fosse gente. Como se fosse um animal, um primata, um macaquinho qualquer. Fiquei incomodada com a visão terrífica das pernas peludas da mulher que se sentou ao meu lado.
Escrever, ainda, sobre a rapariga com um brilhante no canino superior que, sorridente, me mostrou uma casa. Inchada de tanto profissionalismo. Dizendo-se jurista, especialista em arrendamento, abriu portas. E janelas. Correu persianas. Disse-me onde o sol nascia e onde, pela tarde, desfalecia. Elogiou o prédio e a vizinhança. Escrever sobre essa casa. Velha. Um quadrado serôdio de luz. As janelas perras a darem para o arvoredo e para o casario baixo. Lá longe, o rio. A cozinha de armários altos e castanhos, com uma celha de madeira podre para lavar roupa. Os quartos pequenos com móveis escuros. Camas com cabeceiras ovais. Cadeiras com espaldares altos e rendilhados a fazerem lembrar tronos de gente pequena. Escrever sobre essa casa que nunca foi minha.