2006/12/27

Muda

Desde pequena que sonho partir um braço ou, em alternativa, ficar afónica. Infelizmente, tal nunca sucedeu. Os meus braços mantiveram-se sãos e inteiros à custa da benévola tirania da tia Dé que gritava mal nos via cabriolando. Chegou a sugeriu aos meus pais que brincássemos de capacete na cabeça para evitar traumatismos cranianos. Quanto à mudez, quis o destino, esse malvado, que constipações e gripes nunca me atingissem a fala. Cada vez que acordava um pouco mais rouca almejava estar afónica, para não ser interpelada pelas professoras e fazer ar de coitadinha no recreio da escola. Hoje acordei ranhosa, com uma aspereza muito grande na garganta. Pensei. É desta que estou afónica. É desta que vou passar o dia a fazer sinais às pessoas, a dizer que não posso falar. Enganei-me. Quando os miúdos se pegaram ao pequeno-almoço, supliquei-lhes que parassem. “A vossa pobre mãe está doente!”, disse-lhes baixinho. Ignoraram-me. Detesto que me ignorem. Fugi pelo corredor, tiritando de frio, enfiando as calças, e dei-lhes um grito que deve ter-se ouvido no sétimo andar. Voltei para o quarto, resmungando contra as agruras matinais da minha vida. Foi, pois, com enorme desilusão, que percebi que não estou afónica. Estou só muito ranhosa e um pouco rouca.