2006/12/14

Sopa

Tem muito cuidado a servir as sopas. Enfia a concha na panela. Fá-la subir acima do prato. Depois inclina-a, despejando a sopa sem entornar uma única gota. Usa uma farda branca, com um grande avental de plástico, chinelos ortopédicos brancos e um quico na cabeça que lhe esconde os cabelos oleosos. Nunca fala com os colegas. Ignora os piropos da D. Fátima que, no balcão do peixe, apregoa carapaus à espanhola e pataniscas. Ignora também a tristeza que a Rosa traz do Cacém e derrama sobre as sobremesas plastificadas, assépticas, que ali repousam. Gelatinas de sabores vários, bavaroises de morango e ananás, bolo de chocolate, arroz doce. Ignora, sobretudo, a tirania da D. Conceição, a chefe do refeitório, solícita e educada apenas para os senhores e as senhoras que serve. Está sempre muito concentrado no que faz. Nos dias em que não está a servir as sopas vejo-o passar, apressado, com os tabuleiros de loiça suja ou lavada. Um sorriso tonto colado ao rosto. Um sorriso que se associa a desgraça, estupidez, imbecilidade, paralisia. Porque se ri ele, que se chama João? Porque se ri o João, o rapaz do refeitório, que não fala com ninguém e com quem ninguém fala, que se limita a servir sopas e carregar tabuleiros de loiça suja? Porventura porque vive e é feliz.