2007/06/29

Muhammad Yunus


A noite entrava na hora da solidão. A casa dormia como um bicho manso. Pelas janelas abertas entravam os primeiros mosquitos da estação. Eu entristecia, deitada no sofá, com o comando na mão. Ele veio sem o esperar. Fez-me companhia durante uma hora. Não mais. Explicou-me o mundo de lá e de cá. Riu-se da cimitarra que utilizo para decepar a minha cabeça, os meus braços, as minhas pernas, às vezes, poucas vezes, só as falanges, as falanginhas ou as falangetas. Eu vi-lhe os dentes brancos e achei-o bonito. Perguntei-lhe se o podia abraçar. Ele fechou o cenho como que a dizer tenha juízo menina, não seja parva. Depois foi ter com as mulheres que respeita, aquelas que o seu banco ajuda a comprar uma vaca, uma máquina de costura, um tear, mulheres que amaciam os filhos com mãos crespas de trabalho.

Cortesãs

"- Atenção, senhor - preveniu-o o escudeiro – olhai que estas mulheres estão já sujas e empestadas que nem os turcos as quereriam como presa dos seus saques. Não só estão carregadas de piolhos, percevejos e carraças, como ainda fazem ninho dentro delas lagartos e escorpiões". Italo Calvino, O Visconde Cortado ao Meio
(Não gosto de gajas, mas gosto de cortesãs. Apesar dos escorpiões, dos lagartos, percevejos, piolhos e carraças. Tanta bicharia miúda fazendo dos corpos fartos das cortesãs, cheios de refegos e sujidade, a sua casa.)

2007/06/28

Gajas

Para além de blogues de mães, também não gosto de blogues de gajas. Os blogues de gajas são aqueles blogues escritos por tipas que se assumem como tal e, pior, falam de coisas que elas acham ser coisas de gajas: sapatos, vestidos, gajos, graus de eficácia de técnicas depilatórias, aulas de pilates e claro, como mulheres modernas que são, sexo. Não percebem, pobres gajas, que a modernidade é uma chatice. Procuram, volta e meia, derramar um bocadinho de erudição, que é para a gente não pensar que são umas gajas burras. Um bocadinho de jazz aqui, um nadinha de grego clássico acolá, muito sentido de humor à mistura, que é para dar a sensação que são felizes e devidamente fodidas. As gajas, quando falam de sexo, procuram fazê-lo da mesma forma que os gajos. E, então, são tristemente patéticas: escrevem como se estivessem possuídas pelas personagens do sexo e a cidade ou, então, como se lhes tivessem crescido testículos, bolas, tomates, colhões, enfim, uns enormes badalos nas partes baixas. As gajas, em regra, não são interessantes. São simplesmente ordinárias. Assim como as fibras de poliéster. Pior do que blogues de gajas, só os blogues de mães gajas.

Maria Madalena


Leonardo Da Vinci, 1515 (?)

2007/06/27

Agualusa

Embirro com o José Eduardo Agualusa. É um sentimento difuso que não sei explicar. Talvez seja a vaidade que me aborrece. Ou, então, a maneira como se faz, e o fazem, passar por grande escritor. Eu não o tenho por grande escritor. É assim-assim. Mas lá que é giro é. (Ainda há mexilhões saracoteando dentro de mim. Só pode. Estou que não posso.)

Mexilhões

Passei a noite sentada no bidé, com a cabeça enfiada na sanita, a vomitar. Desconfio que foi por causa de uns certos mexilhões que comi ao jantar. Nunca mais na vida toco em mexilhões. Fiquei exausta. Cada vez que um vómito se assomava à garganta, o meu corpo sacolejava. Parecia que as entranhas, as vísceras, as miudezas me queriam fugir pela boca. Quando deixou de ter comida para botar fora, o meu corpo começou a tentar arrancar pedaços esponjosos do seu avesso para se aliviar. Eu a assistir a tudo, incapaz de dominar o meu corpo, de lhe dar um par de tabefes para que sossegasse. Pela madrugada, os vómitos tornaram-se mais espaçados, mais dolorosos. O cheiro azedo misturando-se com os cheiros aprisionados dos champôs, dos detergentes, do sabonete, da pasta de dentes, do colutório dos miúdos, provocou-me nova náusea, desta vez acompanhada de uma ligeira quebra de tensão. Cai ao chão. Deixei-me ficar. E gemi uma infinidade de ais.

2007/06/25

Sari

Amanhã tenho um julgamento em Moimenta da Beira. É um bom dia para estrear o sari branco. Há-de o senhor oficial de justiça revirar os olhos quando, ao chamar pelo meu nome, me vir responder, de branco evanescente, com uma pinta na testa e os braços com pulseiras de mil cores.

Coelhinho

Olho para o cartaz do PP, vejo a cara do Nobre Guedes, espreitando-me com cara de coelhinho, e tenho dó do meu pai. Depois olho para os outros cartazes e tenho pena de mim.

Torre (3)

(Pequena Torre de Babel, Bruegel)

Torre (2)

Acordo com os movimentos da minha filha. Quis dormir comigo. Tento voltar a adormecer. Fecho os olhos. Quero retomar o sonho no ponto exacto em que foi interrompido. Não é todos os dias que os meus sonhos são povoadas por figuras do calibre do Zé Maria. Adormeço. Volto a sonhar. Agora, estou na Amadora. É um lugar mágico, medieval, pouco nítido. Como se fosse uma ilustração de um livro antigo. Sombrio, feito de ruas estreitas, sinuosas, esconsas, que desembocam num largo. Nesse largo há uma torre extraordinária, piramidal. Larga na base, vai afunilando até ao topo. Não está terminada. É feita de rectângulos de pedra enegrecida. Um baluarte com muitas varandas, arcos, ogivas, colunas. A torre assemelha-se a uma réplica da Pequena Torre de Babel, de Bruegel. Em frente da torre, há uma praia, muito pequena, de areia suja, cheia de vidros e de bocadinhos de tijolo. O mar é calmo, terroso, opaco, baço. Dispo-me. Não há ninguém por ali. Avanço. Por baixo da água há um tapete de pedras irregulares e conchas partidas. Ferem-me os pés. A água está morna. Dou um mergulho rápido e saio. Começo a subir a torre pela escada estreita que a serpenteia. Percebo, então, que a torre está apinhada de pessoas que, escondidas nas suas sombras, assistiram ao meu banho, à imersão do meu corpo nas águas sujas daquele mar. Riem. Continuo a subir as escadas. Volto acordar. Sei, porém, perfeitamente o que fiz quando cheguei ao cimo da torre.

Torre (1)

Sonho que sou enfermeira. Trabalho num hospício labiríntico. Um sítio triste, lúgubre, que faz lembrar a Roménia de Ceaucescu. Tenho a meu cargo um único doente. É alguém muito especial, que exige vigilância permanente. Um doido varrido.Trata-se do Zé Maria, o rapaz franzino e triste do Big Brother. Está numa camarata imunda, deitado numa cama de metal. Os membros, pernas e braços, estão presos com ligaduras às extremidades da cama. Tudo está sujo, coberto de sarro. Há bolas gigantescas de cotão nos cantos do quarto. Só a minha bata, os meus sapatos, o meu chapéu, que tem uma fita fininha de veludo azul, estão limpos. Sou, estou branca, alva, clara. Abeiro-me da cama. Apesar de preso, o Zé Maria sorri-me com aquele ar de imbecil que Deus lhe deu. Depois de me observar, enquanto verifico se está bem preso, diz, calmamente, na sua pronúncia barranquenha "A Sra. Enfermeira hoje não tirou o buço, pois não?".

2007/06/24

aishwarya rai

(faltam cinco meses para voltar, uma eternidade.)

2007/06/22

Rafaela

A Rafaela passou a manhã ao telefone com a mãe. Falou sobre a educação que dá à sua filha. A Tânia Patrícia vai, pela segunda vez, chumbar o ano. Segundo a Rafaela, a culpa é da professora de português, essa cabra, que obriga os alunos a conjugar verbos irregulares. E hoje traz uma sandálias-chocalho. Cada vez que passa no corredor a caminho da fotocopiadora, sempre apressada, bufando pelas ventas, simulando urgência e ocupação, ouvem-se pedrinhas, conchinhas. É o fundo do mar que tilinta nas suas patinhas de paquiderme. Vou ao cinema bisbilhotar a intimidade da Lady Chatterley, que uma pessoa não é de ferro.

2007/06/21

Mia Couto

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir. Terra Sonâmbula
(Tamanha serenidade, tamanha lucidez. E foi de África que ele falou.)

Anita


(Olho para esta fotografia da Anita Desai. É tão bonita. Tristes, as mulheres que não sabem envelhecer. )

2007/06/20

Dildos

Telefono à minha irmã. A propósito do baptizado dos nossos sobrinhos, como duas almas castas que somos, começamos a nossa conversa a falar sobre bíblias para crianças. Depois passamos para temas mais prosaicos. Falamos da tal feira erótica de Lisboa. Confesso-lhe que gostava de passar por lá. Nem que fosse só para ver um vibrador ao vivo. Nunca vi nenhum, facto que é quase inconfessável. É então que a mana me fala de dildos.
-Que raio é um dildo?
-Ó mana...
-Ó mana nada! Explica-me lá o que é um dildo!
-Nem penses!
-Ó pá, vá lá, explica-me!
-Mana, eu depois explico-te. Agora aqui não posso.
-Explica lá!
-Estou a trabalhar!
-Não me faças isto que já sabes que não aguento!
-Ó pá, é uma espécie de vibrador.
- Ai é?
-Sim, só que não vibra.
-É isso?
-É.
-Grande coisa... E para que serve um dildo se não vibra?
-É para não usares o dedo...
-Ai, que nojo!
-Ó mana, não te faças de santa...
Ainda não percebi bem o que é um dildo. Mas dildo não é nome de vibrador que não vibra. É nome de gnomo, de duende, de anão muito pequenino e esverdeado que anda aos pulinhos pelo bosque, apanhando bagas e cogumelos, e que tem um chapéu ridículo em forma de cone no cimo da cabeça.

Rama Yade

Primeiro escolheu Rachida Dati, de origem marroquina e argelina, para Ministra da Justiça. Agora, escolhe Rama Yade, de origem senegalesa, inteligente (basta ler a sua entrevista) e linda de morrer, para Secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e dos Direitos Humanos. Há que reconhecer que este homem, o Sarkosy, é de uma habilidade política extrema.

Granada

Pela manhã, aconteceu-me uma coisa estranha. Não sei se por causa da posição em que estava sentada, inclinada sobre o teclado, com o torso levemente torcido para espreitar o homem da grua, senti o bater do meu coração. Um bater acelerado, como é próprio dos corações, mas mais intenso e doloroso. Parecia que alguém me batia com um martelo no peito. Fiquei quieta, imobilizada, a ouvi-lo. Foi então que percebi que o meu coração tem a forma de uma granada. A qualquer momento pode explodir.

2007/06/19

Lago Turkana

Ontem, depois de deitar os miúdos, sentei-me a ver “O Fiel Jardineiro”. Não gostei especialmente do filme. A protagonista, Rachel qualquer coisa, é linda. Põe a Scarlet não sei das quantas, sonsa e ordinária, a um canto. O filme não me entusiasmou. Nem me comoveu. É bonita, e desesperada, a imagem quase final da criança que corre sozinha para sítio nenhum. Gostei de ver os ocres e os brancos do lago Turkana, berço da humanidade. Não deixa de ser irónico que as pedras que assistiram ao nascimento dos primeiros homens, milhões de anos atrás, os vejam agora morrer de fome, de sede, de desespero. Pensei-me imune ao filme. E dormi. Hoje, porém, acordei com nojo do mundo. E pela manhã fora essa sensação manteve-se. Um nojo a crescer dentro de mim. Como um bicho. Ou um filho. Nojo dos passageiros do comboio. Nojo dos rostos que espreitam nas revistas e nos jornais. Nojo dos jornalistas, dos psicanalistas, dos psicanalisados, dos advogados, dos chefes, das secretárias, dos subordinados, dos obesos, dos cultos, dos analfabetos. Nojo dos homens ciganos que fumam sentados, enquanto as mulheres vendem filmes, camisolas e malas louis vuitton e distribuem estalos pelas crianças ranhosas que brincam na copa das suas saias. Nojo de mim. Sobretudo de mim. Que os outros pouco me importam. Hoje, se pudesse, fazia uma sabonária de sabão azul e branco e lixívia. Metia-me lá dentro e esfregava-me até ao tutano com uma escova de arame. Lá longe, nas margens do lago africano, as gretas secas e esboroadas continuam ensopadas de sangue.

2007/06/18

Marvin Gaye

(Tenho saudades de ver este filme.)

Ségoléne

A melíflua Ségoléne, de voz doce e olhar meigo, aguentou uma campanha eleitoral ao lado de um homem que aprendeu a desprezar, segura que de a imagem de esposa, mãe de quatro filhos, lhe era benéfica. Imagino que não tenha sido fácil. E não a censuro. Até porque durante a campanha os franceses reclamaram do casal gestos de afecto. Queriam um beijinho. Como os convidados dos casamentos que se põem a bater com os talheres nos copos. Acabada a campanha, perdida a eleição, a bela Ségoléne acaba de dar um pontapé no marido, François Hollande, ao que parece um pinga-amores, expulsando-o de casa e reclamando o seu lugar à frente do PS francês. O mundo está cheio de grandes mulheres.

Cama (2)

Há uma outra cama que me causa o mesmo conforto. É a cama do João. É uma cama normal, sem grande encanto, de madeira clara, que herdámos de um tio que tinha uma loja de móveis em Sacavém. Não é muito bonita. Mas é a cama do meu filho. Gosto de me deitar quando, depois de cumprido os rituais nocturnos, apago as luzes do seu quarto. Gosto de o ouvir perguntar "Mamã, podemos ficar a falar?". Gosto de deslizar o meu corpo para perto do seu, encaixar-me nele, como se fossemos duas peças de um puzzle, sentir-lhe o cheiro morno do corpo, cheiro de meias de leite, de galões, cheiro de pão fresco com manteiga. Gosto de tocá-lo, de apertá-lo com força. É como se, com esse gesto, pudesse novamente torná-lo parte do meu corpo, pudesse pô-lo outra vez dentro de mim. Gosto de sentir-lhe a maciez da pele, sentir-lhe o cabelo crespo, cortado curto, apertar-lhe as mãos suadas, beijá-las. Gosto de dizer-lhe pela milésima vez "Vou contar-te um segredo, mas não o podes conta a ninguém", vê-lo sorrir com os olhos, fartinho de ouvir esta conversa. Aproximar a minha boca do seu ouvido e sussurrar-lhe "Adoro-te". Falamos do que lhe apetece. Toiradas, é assim que ele diz, mamutes, do Leonardo da Vinci e do Miguel Ângelo (mas, mãe, como é que tu sabes que ele era homossexual?!), tesouros escondidos no fundo do mar, do Mantorras. Por fim, deixo-o adormecer até lhe sentir a respiração pesada.

Cama (1)

A cama dos meus pais é uma cama em pau preto, de linhas direitas, que veio, desmontada, num dos contentores de Moçambique. Mesmo por cima, pendurado na parede, há um crucifixo grande e pesado, esculpido na mesma madeira. Um Cristo preto, preto, preto. Preto como a noite, a fazer lembrar hipopótamos, leões, zebras, búfalos, elefantes. Durante muitos anos, esta cama teve um colchão mole no qual deixava afundar o meu corpo. Eu gostava daquele colchão. Não só por ser mole, mas também por causa da cor do forro. Era cor-de-laranja. Sempre gostei de dormir na cama dos meus pais. Desde pequena. Desde que me conheço. Já crescida, 18, 19 anos, nas manhãs de sábado e de domingo, enfiava-me entre os dois, destapava a cabeça da minha mãe, via o meu pai acordar, sorrindo timidamente. Eu percebia que lhe era desconfortável ter uma filha crescida, com corpo e formas de mulher, deitada ao seu lado. Não era por nada. Pura e simplesmente era algo que o deixava pouco à vontade, que não encaixava com a sua educação e com a sua vida. Durante a altura dos exames da faculdade, muitas vezes, era ali naquele quarto, naquela cama, que dormia a sesta, antes de retomar o estudo. Mesmo agora, quando estou em casa dos meus pais e me apetece descansar cinco ou dez minutos, é a cama deles que escolho para me deitar. Deito-me sempre do lado do meu pai, com a sua almofada. Gosto de sentir o cheiro dele. É um cheiro limpo, de sabão, pasta de dentes, de champô. O meu pai tem também no corpo entranhado o cheiro da loção Pantene que há muitos anos usa para prevenir a queda do cabelo. Um líquido amarelado, transparente, dentro de um frasco de vidro quadrangular.

2007/06/15

Jorge Maravilha

(gosto tanto de o ver de bigode.)

Lady Chatterley

Há coincidências. Ando a ler, aos soluços, sem grande entusiasmo, intervalado por outras leituras, O Amante de Lady Chatterley, do D. H. Lawrence. Ontem estreou o filme de Pascale Ferran, que adapta, ao que parece bem, o livro ao cinema. Até ver não estou a gostar do romance. Mas já percebi que ainda não cheguei à parte em que o caseiro entra em acção.

Alcibíades

Vou descansar aqui. Aqui é um bom sítio para descansar. Comprei bilhete para a última paragem e tomei o comprimido que a doutora do centro de saúde me receitou para dormir. A minha filha está sempre a dizer que a bebé dela adormece mal o carro começa a andar. O mais certo é que me aconteça o mesmo. Ainda a camioneta não saiu da gare e já eu hei-de estar a dormir profundamente. O senhor do guichet disse-me que a viagem até ao Montijo dura cerca de duas horas. Tanto tempo, disse-lhe eu toda contente, já a imaginar-me com a cabeça encostada ao vidro a dormir durante duas horas. É que a camioneta dá a volta por Alcochete, por causa do centro comercial, e vai parando pelo caminho, explicou o senhor do guichet. Duas horas é muito tempo. Dá para descansar o corpo e a cabeça. Hei-de dormir descansadinha. Sem ouvir os ruídos do prédio e a respiração pesada do meu Alcibíades. É engraçado, mas só depois de morto é que lhe comecei a sentir a respiração pesada. Quando era vivo dormia que nem um anjinho. Não tugia nem mugia. Quietinho e silencioso como uma estátua de pedra. Depois de morto é que começou a ressonar tão alto que não me deixa dormir. E dá umas bufas mal cheirosos que empestam o quarto todo. Diz que é próprio dos mortos, dar assim bufas com cheiro de enxofre. Coitadito do meu Alcibíades! Quem o viu e quem o vê. Quando estava vivo dormia como se estivesse morto, nem o notava na cama, agora que está morto dorme como se estivesse ainda vivo! Sempre foi um homem muito complicado. Como o nome que tinha. Alcibíades. Agora vou fechar os olhos. Depois vou adormecer. Depois vou esperar que alguém me toque no ombro, me diga, olhe, senhora, psssst, acorde, chegámos ao terminal.

2007/06/14

Calcutá

(Ainda não chegou a época das monções e já chove, com fúria, em Calcutá.)

Pimenta

Encontro, na livraria do costume, a obra quase incompleta do Alberto Pimenta. Num poema visual (seja lá o que isso for) utiliza amiúde a palavra cagalhão. Cagalhão é uma palavra divertida. É. Raramente se lê. Dá-me sempre vontade de rir. Não sei porquê. Há poucas palavras-cócegas. Continuo a folhear o livro. Dou de caras com a fotografia de uma das suas performances. Com ar demoníaco, assustador, o cenho carregado, apresenta-se de pé. O pénis, erecto, espreita por entre a fralda da camisa às riscas. Fico a olhar para o pénis do Alberto Pimenta. Estou habituada à nudez feminina. Pelo menos a minha, que enfrento todos os dias. Já a nudez masculina causa-me estranheza e desconforto. Não a acho apelativa. Nunca achei. Fecho o livro. Passo para a secção da literatura infantil.

Esquimó

-Mãe, não se deve dizer esquimó.
-Não?
-Diz-se inuíta.
-Porquê?
- Esquimó é o mesmo que dizer preto.
-É?
-Ou monhé!
-A sério?
-A sério. Não digas.

(Há quem ache que a educação que lhes dou é profícua em patranhas politicamente correctas. Não acho.)

2007/06/12

lou reed

(Perfect Day)

Mendigos e Altivos

“(…) - Estou a pensar no aleijado. Que presunção! A quem lhe der ouvidos até há-de parecer que as mulheres andam mesmo atrás dele.
- Não te esqueças, senhor oficial, de que aquele mendigo, por causa das mutilações, representa uma mina de ouro. As mulheres que o cortejam são interesseiras.
- Seja como for! Uma criatura tão hedionda!
- Não há nada que seja hediondo. Este homem-tronco faz amor tão bem como qualquer outro. E até melhor, se bem entendo e a julgar pelo que me foi dado ouvir. Digo-te eu que os gritinhos de volúpia da mulher não eram fingimento. E confesso ser tal coisa bastante animadora.
- A que chamas tu animadora?
- Olha - disse Gohar -, reconforta saber que até um aleijado como aquele pode dar prazer.
- Semelhante monstro?!
- Este monstro tem sobre nós uma vantagem, senhor oficial. Sabe o que é a paz. Não tem nada a perder. Pensa-me só nisto: não há nada que alguém lhe possa tirar.
- Pois tu julgas então que é preciso chegar a esse ponto para uma pessoa ter paz?
- Não sei - respondeu Gohar. - Talvez seja necessário um homem tornar-se homem-tronco para atingir a paz, para a conhecer. Imagina só a impotência do Governo perante um homem-tronco. Que poderá o Governo contra ele?
- Pode enforcá-lo - disse Nur El Dine.
- Enforcar um homem-tronco! Não, de maneira nenhuma. Não há governo nenhum com humor para isso. Seria belo demais. (…)”

Albert Cossery, Mendigos e Altivos

Cossery


Torel

Nunca entrei no Lux, nem na Capital (não escrevo com capas, por ser letra estranha à minha língua), nem na outra discoteca que fica ao lado, com nome estrangeiro, onde numa noite já distante, houve tiroteio, pum-pum, e mataram um segurança com corpo de camião tire. Também nunca entrei no Frágil. Nem na Bica do Sapato. Nunca entrei nestes sítios e, naturalmente, nunca entrarei. São lugares que desprezo na exacta proporção em que estes lugares, porventura se fossem gente, me desprezariam a mim. Em contrapartida, conheço os cantos e os detalhes da Igreja de São Domingos, conheço as sombras da Rua Passos Manuel, onde há frutarias e uma livraria e uma sex-shop, conheço o cheiro nauseabundo das casas de banho do Centro Comercial da Mouraria. Conheço também o jardim mais bonito da cidade, o jardim do Torel, lugar suspenso no tempo, onde vivem todos os bichinhos da conta de Lisboa.

2007/06/11

Graça

Aos trinta e cinco anos cumpro o meu único sonho burguês: ter empregada durante toda a semana. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira. Bendita Graça que, carregando consigo o pequeno transístor, circula por todas as divisões da casa, artilhada de panos, esfregonas, detergentes, pondo em ordem parte da minha vida. E viva o luxo.

Mosquito

Durante a noite um insecto qualquer, um mosquito pequeno, não maior do que uma pulga, mordeu-me as mãos e os pés. Acordei para me coçar com fúria, arranhando a pele até sangrar. Umas babas pequeninas, violáceas, cobriram-me rapidamente os tornozelos. De uma das vezes que acordei não consegui voltar a adormecer. Fiquei a escutar o silêncio da noite, sentada na cama. O silêncio da noite parece-me sempre terrível por ser, também, o silêncio da solidão. Estava prestes a voltar a adormecer quando senti um bicho, devia ser o tal mosquito-mordedor, pousar no lóbulo da minha orelha. Pensei em erguer a mão com lentidão e, num golpe certeiro, esborrachá-lo contra mim. Porém, antes que o pudesse fazer, o mosquito começou a falar-me ao ouvido. Avisou-me logo, assim de supetão, que estivesse descansada pois não tinha intenção de se enfiar pelo meu ouvido adentro e que também já estava com a barriguinha cheia e, por isso, não me morderia mais. Agradeci-lhe. Depois, pressentindo a minha natureza alcoviteira, contou-me histórias da vida do prédio. Explicou-me que a vizinha de cima, a psicóloga clínica, a que tem um BMW, gosta de dormir nua em lençóis de cetim e que a estomatologista do segundo andar, certa vez que o namorado esteve fora, dormiu com um outro homem, mais velho e careca, que estremecia, com espasmos, cada vez que lhe tocavam nos cotovelos. E continuou por aí fora. Falou-me também da respiração pesada do barão trepador e das frases incompreensíveis que a Madalena grita durante a noite. Era um mosquito muito falador. Voltei a adormecer precisamente quando ele quis começar a falar do que via no meu quarto.

2007/06/09

2007/06/08

Massamá (2)

Quando assim a ouvia falar, ficava com vontade de me vestir de ninja e assaltar a casa de Massamá para salvar os livros da tirania de tanta parolice e delicadeza. Agora é juíza. Usa uma beca cheia de cordões e pregas. Decide sobre a vida dos outros. Anda inchada como a rã da fábula. Qualquer dia rebenta. Ao contrário do que a minha ranídea (aquele que apresenta qualidades ou atributos da rã?) colega imaginava, os livros não se devem colocar num pedestal. Devem tratar-se como objectos que são. Às vezes, com amor. Outras, com raiva. Por exemplo, sempre que dou de caras com um exemplar do “Amor em Tempos de Cólera”, lembro-me da minha irmã, a espumar da boca, tal qual cadela raivosa, daquelas possantes e babosas, a pegar no meu “Amor em Tempos de Cólera” e a rasgar-lhe as páginas. Completamente tresloucada só porque eu, já nem sei porquê, lhe rasgara a capa do monótono “Germinal”. A verdade é que sempre que oiço falar do “Amor em Tempos de Cólera”, ou de qualquer outro livro do GGM, volto atrás, ao tempo em que éramos duas adolescentes feias que discutiam, com ódio e fúria, por tudo e por nada, e dou de caras com o amor que lhe tenho.

Massamá (1)

Tinha uma colega, leitora assídua de insignificâncias, que passava a vida a gabar-se do amor que tinha aos livros. Também se gabava das esmolas que dava aos pobres e de que um dia gostaria muito de adoptar uma criança. De preferência um pretinho. Era assim que ela dizia. Um pretinho. Como se o pretinho fosse um bibelot, um bijou, um coitadinho qualquer de quem se tem piedade e mais nada, um animal de estimação, destinado a desempenhar no seu lar suburbano o papel que os anões dos quadros do Velasquez desempenhavam nas cortes dos feios Felipes. Em relação aos livros, gabava-se, para quem a quisesse ouvir, que os tratava com delicadeza. Explicava que os forrava para não os estragar e que nunca, mas nunca, os sublinhava. Dizia estas coisas muito orgulhosa, mostrando os dentes amarelados, grandes e feios. Eu olhava para ela, um sorriso emparvecido a dançar-lhe no rosto sardento, e deixando-me inundar pela mesquinhez, característica proeminente da minha pessoa, pensava foda-se, caralho, és mesmo de Massamá.

2007/06/07

La Llorona

Todos me dicen el negro llorona
Negro, pero cariñoso
Todos me dicen el negro llorona
Negro, pero cariñoso

Yo soy como el chile verde llorona
Picante, pero sabroso
Yo soy como el chile verde llorona
Picante, pero sabroso.

Hay! de mi llorona
Llorona de ayer y hoy
Hay! de mi llorona
Llorona de ayer y hoy

Ayer, maravilla fui llorona
Y ahora ni sombra soy
Ayer, maravilla fui llorona
Y ahora ni sombra soy.

Salias del templo un dia llorona
Cuando al pasar yo te vi
Salias del templo un dia llorona
Cuando al pasar yo te vi

Hermoso huipill llevabas llorona
Que la virgen te crei
Hermoso huipill levabas llorona
Que la virgen te crei.

2007/06/06

Aretha Franklin

Marguerita

Faz hoje um ano que tomei uma caixa de Xanax, disse a mulher ao empregado do bar. Depois calou-se, estranhando as palavras que se tinham soltado da sua boca. Nunca ninguém lhe falava desse dia. Nem o marido. Nem os irmãos. Nem os pais. Nem a única amiga que tinha. Era como se não existisse. Como se outra, que não ela, tivesse naquele dia rondado o bairro de Chelas à procura de espantar a dor para os homens que, sonolentos, despertavam para a manhã. Como se outra, que não ela, tivesse escutado os renhaus dengosos que as mulheres lhes lançavam das janelas dos prédios de habitação social. No fundo, aquele dia só existia para ela, para mais ninguém. Por isso o celebrava sem que os outros soubessem, bebendo ao final do dia, num bar da rua de São Paulo. O empregado do bar voltou e pousou no balcão um copo triangular, com gelo moído e hortelã fresca. Sorriu-lhe de forma profissional, asséptica, como a querer dizer-lhe olhe que eu também tenho os meus problemas, não estou com disposição para confissões. Mas a mulher não o percebeu. Ou fingiu não o perceber. É triste uma pessoa falhar até na morte, não acha? E, sem esperar pela resposta, começou a chupar o sal dos bordos do copo.

Ricardo

Olha-me. Deve ter 5 ou 6 anos. Tem um ar frágil, débil. As mãos estão cobertas de pequenas borbulhas. Usa um boné verde que esconde uma cabeça demasiado pequena para o seu corpo. Parece estar sozinho. Fixa o olhar na caixa que tenho em cima dos joelhos. Sem hesitações, sem vergonha, pergunta-me o que tem lá dentro. Respondo. Ele faz outra pergunta. A nossa conversa, feita de sorrisos, poderia continuar assim por mais uns minutos, até à hora da chegada do meu comboio. De repente, a mulher que está sentada ao meu lado cobre com as mãos o rosto, num gesto brusco de desespero. Ó Ricardo, tu está calado! Já não te posso ouvir! Desaparece! O menino foge para um canto qualquer da estação. Põe-se a olhar para o chão à cata de pequenos tesouros. Olho a mulher que acabou de falar. É nova, deve ter vinte e poucos anos. Tem o cabelo escuro, muito comprido, com resquícios ainda visíveis de uma permanente feita há já algum tempo. Usa umas calças de ganga e um blusão azul-escuro. Apesar de roídas, as unhas estão cobertas por um verniz de cor salmão. Lê um livro da colecção Harlequim. Chama-se “Desejo apenas um homem”. Na capa, sobre um fundo vermelho, um homem abraça uma mulher loura que usa um vestido justo, amarelo. A mulher não consegue desprender o olhar daquelas páginas. Está completamente absorta na leitura daquele livro. Não olha o filho. Os seus olhos não o procuram para ver o que está a fazer. Não cuidam dele. Fico com a sensação de que se o menino desaparecer, para sempre, no meio da multidão, ela ficará aliviada.

2007/06/05

Lila

Com a Lila Downs descobri que “A Chorona”, canção que, em pequena, adorava ouvir a minha mãe cantar, afinal não foi mais do que a lusitana versão da “La Llorona” mexicana. Gosto, pois, da Lila Downs. Mas, esteticamente falando, é cá uma macaca de imitação. Até enjoa.


ETA

A ETA anunciou o fim das tréguas. Persistente, obstinada, a ETA. Faz lembrar uma velha louca e abandonada que ronda a cidade em busca de um passado em que foi admirada e amada. Porque basta ir a Bilbau e ver como os bascos, apesar do seu património próprio, se sentem espanhóis. Não há paredes pinchadas de preto, nem murais exaltando o separatismo. O que há é uma vontade urgente de paz. A ETA, hoje, não passa de uma organização mafiosa, criminosa, que mantém relações amistosas com terroristas da pior espécie, que cobra impostos revolucionários para se sustentar. Ao contrário do IRA, a ETA não tem decência nem discernimento. Ao contrário do IRA, a ETA não merece o apoio, nem o respeito dos próprios bascos. Bem pelo contrário. De facto, os etarras só merecem o apoio de certos bloquistas acéfalos que insistem em os ver como heróis.

Anã

Encontrei a anã das rifas na feira do livro. Nem queria acreditar quando a vi abordar a Luísa Ducla Soares que, por baixo de um triste chapéu de sol, comendo um perna-de-pau, aguardava que as crianças lhe pedissem autógrafos. Tortinha, o corpo cheio de altos e baixos, feiíssima, a anã lá estava, impingindo papelinhos amarelos aos transeuntes que pastelavam de expositor em expositor em busca dos sucessos editoriais. E eu que pensava que a tinha eliminado com o carrinho de compras do pingo-doce.

2007/06/04

Falópio

Não gosto de blogs de mães. As crianças largam um peido e as mães correm a partilhar isso com o mundo. Aparece um furúnculo na nalga esquerda do menino e toda a gente tem de ficar a saber da sua exacta consistência e coloração. Tudo descrito com muitos pontos de exclamação. Pior, muito pior, certas mães pespegam fotografias das crianças nos seus blogs. Algumas, a verdade tem de ser dita, são uns verdadeiros estafermos. São. Que a feiura não escolhe idades. As mães, em regra, são irritantemente felizes, ostentam um estúpido apego à maternidade como se isso lhes conferisse importância, estatuto, sentido de vida. Derramam por aqui e por ali uma alegria de pechisbeque. Tudo é maravilhoso e cor-de-rosa. Mães que se tomam por semi-deusas, leitoras furiosas do americano Brezelton, que nunca gritam, nunca magoam os filhos, que vivem a vida como se estivessem dentro de um anúncio publicitário de pensos higiénicos. Mandasse eu neste mundo e mandaria proceder a laqueações de trompas de falópio em massa. É certo que também escrevo, volta e meia, sobre os meus miúdos. Mas isso é porque ela é a estrela da tarde mais bonita do mundo e ele é o barão trepador mais giro do universo. Não há filhos que se comparem aos meus. Juro. Não percebo como é que a minha mediania, que tantas vezes roça a mediocridade, foi capaz de os fazer assim. É, pois, por piedade, por infinita magnanimidade, que partilho com a blogosfera as gracinhas da minha prole.

4 de Junho


Marcovaldo

Um dia, à faixa do canteiro de uma avenida citadina foi parar sabe-se lá como uma rajada de esporos de que vieram a germinar cogumelos. Ninguém deu por isso senão o servente Marcovaldo que todas as manhãs apanhava ali mesmo o eléctrico.

Marcovaldo, Italo Calvino

2007/06/01

Chongqing

Hei-de morrer e renascer em Chongqing, entre florestas de betão e tocas de zinco. Habituar-me-ei a carregar baldes de cimento sobre os ombros. Hei-de sentir o corpo fisicamente cansado, ter calos nas mãos, o cabelo crespo, a pele baça de sujidade, os dedos dos pés muito separados, com fungos e bolores. Hei-de renascer em Chongping e aprender a comer de cócoras, encolhida, como se estivesse ainda no ventre da minha mãe. E a sorver, sem temer o ocidental embaraço, a sopa de massa, dando estalinhos com a língua, sorrindo com o conforto quente que há-de escorrer-me pelas goelas abaixo. Nos domingos, em Chogping, hei-de vestir uma blusa amarela, desbotada pelo tempo, com pavões desenhados. Apanharei o cabelo com um elástico. Passearei no parque onde as árvores largarão um cheiro enjoativo a fruta madura e os meninos comerão gelados de três sabores.