Sempre estranhei os que elegem a coerência como virtude política. Enchem a boca e elogiam, por exemplo, a coerência do Álvaro Cunhal. A coerência é uma virtude pífia, vale pouco, quase nada, é uma virtude manca que deve ser abandonada quando pensamos o mundo e ele nos exige mudança. Ao contrário do Rui Tavares, não estranho que o Nick Cohen, no seu livro, comece por contar que em criança não comia laranjas portuguesas por causa do Salazar e termine considerando tolos aqueles que, de forma histérica, se insurgem contra a guerra do Iraque. Por influência da minha tia Dé - que Deus a conserve muitos anos perto de mim, enfiada no seu avental, sempre angustiada e tensa, o cabelo num desalinho, o amor a pingar-lhe dos olhos tristes - também eu fui uma menina marxista-leninista. Por exemplo, só gostava dos desenhos animados do Vasco Granja se fossem soviéticos, búlgaros ou checoslovacos. O meu irmão mais velho, um precoce neo-liberal, para me arreliar, volta e meia, abria muito os olhos e, com uma voz melíflua, dizia que aqueles desenhos animados eram americanos. Eu amuava e, num gesto convicto, desligava o televisor. Depois fui uma adolescente activa, possuidora de uma dose grande de entusiasmo e de imbecilidade. Frequentei amiúde a sede do PSR, sobretudo nas noites de sexta-feira, que eram animadas, em busca da dinâmica revolucionária, da justiça social, dos camaradas e das camaradas, da defesa das minorias e dos oprimidos. Agora, reconheço, sou uma balzaquiana, de hábitos burgueses, como é costume dizer-se, acomodada, desiludida, frívola, com queda para homens como o Pacheco Pereira e o António Barreto. Não vejo, pois, mal nenhum naqueles que mudam de opinião, que abandonam movimentos, partidos, ideologias. Só os burros, as mulas, as bestas cavalares, as cavalgaduras, olham o mundo sempre de frente. Mas esses têm desculpa. Usam palas.
(Desconfio que estou a desenvolver uma obsessão em relação ao Rui Tavares.)
(Desconfio que estou a desenvolver uma obsessão em relação ao Rui Tavares.)