2007/11/13

Tia

Não tenho o privilégio da raça pura. Sou mestiça. Certa vez, contei à tia Amália a confusão que a indefinição dos meus traços provoca. Já me tomaram por brasileira, cubana, uruguaia, argentina, cabo-verdiana, moçambicana, marroquina, paquistanesa, indiana e até espanhola. Uma mixórdia de origens e lugares. A minha tia abanou a cabeça, rejeitando tais hipóteses. No crepúsculo vermelho, e fresco, da casa de Pondá, assegurou que pareço parsi. Perante a minha surpresa, buscou concordância na Joaninha, sua empregada de longa data que, nesse instante, entrava com um tabuleiro cheio de pastelinhos recheados de baji de batata. Habituada, porventura, a nunca contrariar a minha tia, a pobre mulher anuiu sem sequer me olhar. A minha tia fez-me uma festa no rosto que me soube às coisas boas que existem no mundo. Olhei-lhe para dentro dos olhos e vi, nesse preciso instante, a menina que o meu pai levava todos os dias para a escola, numa bicicleta que cruzava veredas de lama e nuvens fofas de insectos. Explicou-me que os parsis, mais claros, são indianos originários da antiga Pérsia, actual Irão, um povo influente, que vive sobretudo nos estados do Maharastra e Gujarat. O tom da minha pele, o recorte dos olhos, a ondulação do cabelo, continuou a minha tia, são característicos dos parsi. Beberricou, de seguida, um sumo de uva muito escuro e ofereceu-me uns doces enjoativos de grão. Engoli um quadrado esboroado que sabia a flores e especiarias. Engoli também as origens imaginárias que a minha tia, nesse dia, me traçou.

(Ontem, no segundo canal, vi um documentário sobre Teerão. Dei por mim a achar-me parecida com as iranianas, a imaginar como ficaria linda com um lenço a cobrir-me os cabelos, eu que sempre me insurgi contra o uso do véu. Pergunto: quão tola se pode ser? Muito.)