2007/11/22

Pirliteiro

Lembro-me bem dessa árvore. Dos ramos espinhosos nasciam folhas enceradas e pequenas que faziam lembrar asas frágeis de insecto. Na Primavera a árvore cobria-se com umas flores de tule branco, muito tolas e perfumadas. Durante o Outono, a árvore vestia-se com uma sobrepeliz de frutos pequeninos, vermelhos, que pareciam romãs e cresciam em cachos. Quis muitas vezes trincar aquelas maçãs liliputianas. Tomar-lhes o gosto. Porém, a tia Dé, quando me via perto de tal árvore, as mãos fechadas escondendo as bagas, abria muitos os olhos. Adivinhando a vontade que eu tinha de as trincar, corria a gritar que tais frutos eram altamente venenosos, que certa vez lhe aparecera no hospital um menino, coitadinho, tão pequenino, muito, muito doente por ter comido umas bagas daquelas. Os médicos, contava ela em alarido, tiveram de lhe enfiam um tubo duro de plástico até ao estômago para o livrar de uma morte certa. Depois dava-me palmadas nas mãos até eu as abrir e largar os frutos vermelhos. Nunca soube o nome de tal árvore. Encontrava-a no jardim do Campo de Santana, talhada em sebes vivas. Também a encontrava nos jardins do Seminário dos Olivais onde o cheiro estival das amoras maduras e o crocitar dos grilos tornavam as tardes de Agosto muito mais quentes. Sempre que via tal arvorezinha vinha-me de dentro uma vontade urgente de lhe trincar os frutos. Mas logo me lembrava dos avisos da minha tia. Imaginava, então, que se trincasse uma daquelas bagas vermelhas cairia redonda no chão tal qual a branca de neve quando provou a luzidia maçã. Se provasse as bagas de tal árvore, era certo e sabido, que passaria o resto da vida enfiada num esquife frio de cristal. Por isso, em obediência à minha tia, nunca mastiguei os pequenos frutos. Apertava-os nas mãos até os esmagar. Uma decepção profunda tomava conta de mim quando lhes via o interior grumoso e pálido. Queria que tivessem um corpo rubro, sinal de doçura, como o dos diospiros. Hoje, quando cruzo o parque da fundação, ignoro os avisos civilizados que aconselham a não pisar a relva e a não apanhar flores, folhas, frutos. Apanho meia dúzia de bagas das árvores que crescem junto do centro de arte moderna. Enfio-as nos bolsos. As bagas continuam sem cheiro. A superfície polida, nacarada, faz-me lembrar um tempo incerto em que fui feliz. Apodrecem nos meus bolsos até ao dia em que resolver metê-las à boca.

(Ontem, lendo certo livro, para além de merovíngios castelos, descobri que a arvorezinha da minha infância se chama pirliteiro e que os seus frutos se chamam pirlitos. Fiquei esfuziante com a descoberta. Como se um sol pequenino nascesse das páginas do livro. É tão importante conhecer o nome das coisas. E, hoje, vagabundeando pela net, descobri que se pode fazer marmelada de pirlitos. Tamanha revelação deixou-me atordoada. Hei-de fazer uma marmelada de pirlitos e dá-la a provar à minha pobre tia.)