2007/11/03

Sansão (4)

O cabeleireiro chega, por fim. Conheço-o. Chama-se Quim. É um nome tão patético, tão abichanado, tão mariquinhas. Como é que alguém que tem a sorte de se chamar Joaquim admite que lhe amputem, de forma tão grotesca, o nome? Não é a primeira vez que me corta o cabelo. Há qualquer coisa nele que me incomoda. Vejo-o muitas vezes, à porta do salão, no intervalo entre dois cortes, a fumar cigarros. Acho-o triste. Nunca o vi sorrir. Está sempre tenso como se, permanentemente, lhe faltasse alguém. Depois de me cumprimentar pergunta, com um sumiço de voz, como quero o cabelo. “Curto, muito curto”. Ele olha-me. Sabe que quando uma mulher arrisca tanto é porque alguma coisa se passa na sua vida. Das duas uma. Ou tem vontade de fechar um capítulo da sua vida e começar de novo, de se tornar numa outra pessoa, ou, então, precisa de se flagelar, de se penitenciar, de se magoar. Cortar o cabelo equivale a uma expiação. Ele senta-se num banco alto, com rodas, e engole uma pergunta qualquer que estava prestes a fugir-lhe da boca. Começa a cortar, enquanto cantarola baixinho uma canção. Tesoura em riste, com precisão, vai-me decepando o cabelo. Ceifa-o com golpes profundos. Eu, como quando era pequena, desvio o olhar do espelho oval e começo a contar os vidrinhos de verniz que estão no interior de um cesto de verga.