Esta noite sonhei com deus, que é como quem diz, sonhei com o Chico Buarque. Vindo directamente do seu país, com um séquito pequenino de gente subserviente, o Chico Buarque está instalado no meu gabinete da Caixa. Eu não tiro os olhos do computador e faço um esforço enorme para ignorar a sua presença. Qual formiguinha aplicada, dedilho, com excessiva aplicação, o teclado. Ele, sentado, noutra secretária, olha-me com calma. Durante muito tempo. “Pôxa, você não pára nunca de trabalhar?”, diz, por fim. Eu, estupidamente empertigada, sem tirar os olhos do computador, respondo-lhe: “Apesar de não gostar do que faço, pagam-me para trabalhar, percebe?”. Ele sorri, aquiescendo com a cabeça. Levanta-se, depois. Deambula pelo gabinete. Bisbilhota códigos e sebentas. Olha para os andaimes do prédio em frente. Tamborila com os dedos no parapeito. Pega no livro que ando a ler e que repousa em cima da minha secretária. Um livro que, juntamente comigo, aguarda o fim do dia e o regresso a casa. Toca na capa nacarada e macia, com as letras amarelas do título que esvoaçam como borboletas agrilhoadas. “Você anda lendo esse livro?” Antes de lhe dar a resposta acordei. Acordei no preciso momento em que o Chico Buarque percebia que, atrás da minha capa ordinária de seriedade e dignidade, afinal eu era, eu sou, uma pessoa interessante. Voltei a adormecer, desejando que ele voltasse. Mas não. Escapou-se. Cansado das paredes tristes do meu gabinete, foi passear para o sonho de uma vagabunda qualquer.
(Obrigado Manelinho por, ainda que contrariado, me teres emprestado o livro do Albert Cossery. Não fora tal livro e o Chico Buarque ter-me-ia tomado por uma qualquer.)
(Obrigado Manelinho por, ainda que contrariado, me teres emprestado o livro do Albert Cossery. Não fora tal livro e o Chico Buarque ter-me-ia tomado por uma qualquer.)