2006/10/17

Expiação

Durmo mal. Acordo muitas vezes durante a noite. Às vezes como línguas de veado e quadradinhos de chocolate com avelãs inteiras que compro, muito baratos, no lidl. Espio os animais da casa. A cadela, os peixes, o rato russo, os bichinhos de conta que ela traz do jardim e que agonizam em tacinhas e caixinhas de fósforos. Outras vezes fumo. Gosto de fumar. Nunca vou aos quartos dos miúdos. Esqueço-me que lhes velar o sono mais tardio. Passo no corredor como um espectro. Acho que nem toco com os pés no chão. O meu corpo é evanescente, pouco denso. Sou capaz de atravessar paredes, voar através do tempo, falar com os mortos, dar risadinhas assustadoras. Sonho muito. Sempre sonhei. Sou feita de imagens sonhadas: árvores de folhas prateadas, jardins coloniais plantados no cimo da António Augusto de Aguiar, um leão passeando, calmo, pelo Parque Eduardo Sétimo, a Baixa labiríntica, um homem chinês, pequeno como eu, sorrindo ao abrir a porta. Antes de adormecer a mesma imagem toma conta da noite. São dois pulsos cortadas. Um corte ligeiro em cada um deles. Uma lágrima de sangue escorre lentamente e ensopa um tapete felpudo cor de café com leite. Não é uma imagem terrível ou angustiante. Não me assusta nem me preocupa. É uma imagem como outra qualquer. Faz lembrar as chagas de um cristo padecente, mas sereno.