2006/10/23

Supérfluo

No quarto, cortei uma franja rala na testa. Saiu torta. Fiquei me examinando no fundo amarelado do espelho. E se casasse? Seria uma forma de me libertar, mas no lugar da avó, ficaria o marido. Teria então de me livrar dele. A não ser que o amasse. Mas era muito raro os dois combinarem em tudo, advertira a minha avó. Nesse em tudo estava o sexo. “Raríssimas mulheres sentem prazer, filha. O homem, sim. Então a mulher precisa fingir um pouco, o que não tem essa importância que parece. Temos que cumprir nossas tarefas, o resto é supérfluo. Se houver prazer, melhor, mas e se não houver? Ora, ninguém vai morrer por isso.”
O Espartilho, Lygia Fagundes Telles
(Havia de ter tido uma avó assim, que me explicasse, sem rodeios, o meu papel no casamento e na cama. Tinha evitado alguns dos pregos que tenho enterrados na carne. Isto de uma mulher achar-se no direito de ter prazer no casamento e na cama é uma tolice, uma modernice, uma palermice. Só traz chatices. Melhor abrir as pernas, arfar ligeiramente, receber o esperma conjugal, lavar os despojos, dar um beijinho de boa noite, virar para o lado, adormecer. Melhor viver no apartamento-prisão-labirinto, distribuindo sorrisos, fazendo sopas, lavando copos e pratos, estendendo cuecas, meias, lençóis, varrendo os cantos, sem nunca olhar para as grades que estão em toda a parte. Melhor ser uma deusa morta do que uma mulher viva.)