A verdade é que cada vez que morre uma das vizinhas da minha avó é ela, a minha avó Felicidade, que me volta a morrer. É o Alentejo que morre. O Alentejo dos grilos, das histórias e das cantigas, do jogo do jangro, das mulheres de lenço à cabeça, das beldroegas, das melancias comidas quentes por nós na sombra do sobreiro solitário que anuncia o moinho. Chegará um dia em que a aldeia se esvaziará das velhas e das quase-velhas. Ficarão apenas as novas e as quase-novas. As que chamam Micaelas, Fabianas e Brunas Sofias às filhas. Que desdenham os nomes das mães e das avós. Felizarda. Piedade. Liberdade. Virtuosa. Preciosa. Que se vestem de poliester nas lojas chinesas que tomaram conta da vila. Que, nas noites de verão, já não se sentam em cadeiras de palhinha, na rua, a conversar. As conversas guardadas pelas estrelas e pela lua. Ficarão, pois, as novas. E as quase-novas. As que já não sabem amassar o pão azedo nem fritar torresmos. Que não dão conta da rugosidade das laranjas e da aspereza da cal. Que não enfiam as mãos na terra. Que não cortam os dedos nas ervas que crescem nos campos. Que já não pronunciam palavras antigas. Talego. Galheta. Alcagoita.
(O Outono é estação propícia às lembranças de quem nos faz falta. A minha avó, torcida, irascível, mentirosa, magoada, faz-me falta. )