Gosto mais que me insultem do que me elogiem (é mentira, mas fica-me bem dizê-lo). Por isso, se alguém me chama chata, apesar da insipidez da ofensa, da tibieza da palavra, eu respondo. A causa foi modificada está, agora, aqui. A moldura de hortenses, porém, é um bocado mariquinhas. Faz-me lembrar anúncios de pensos higiénicos ou então as mangas tufadas dos cantores mariachi.
Sou Ana de cabo a tenente/ Sou Ana de toda patente, das Índias/ Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada/ Sou Ana, obrigada/ Até amanhã, sou Ana/ Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos/ Sou Ana de Amsterdam.
2007/10/31
Página 161
Não percebi as instruções. Sou uma analfabeta funcional. Enganei-me na frase. Não tenho jeito para esta coisa das correntes.
Pingue-pongue
Não é pela falência do sistema de ensino público que a classe média, média alta, mete os filhos nos colégios privados. É por preguiça e por estatuto. Há quem faça do cu três bico para por os filhos no São João de Brito, no Moderno, no Sagrado Coração, no Manuel Bernardes e afins. E há quem sossegue com a exigência e o acompanhamento dos colégios. Assim, ao final da tarde, enquanto os filhos estudam, as mães podem ir descansadas às aulas de pilates e os pais podem fornicar docemente com os colegas e as colegas do escritório. Ter um filho numa escola pública, para além de não conferir estatuto, dá trabalho, exige coerência e disponibilidade. A maior parte dos pais e das mães não está para isso.
(qual Pedro Nunes, qual Luísa de Gusmão, a minha escola, a Herculano de Carvalho, nos arrabaldes da cidade, ao lado de uma praça onde havia uma igreja, um mictório público que cheirava a mijo rançoso e um coreto antigo, tão lindo, que assistiu aos meus primeiros tremores alcoólicos, ficou na 37ª posição da lista.)
(qual Pedro Nunes, qual Luísa de Gusmão, a minha escola, a Herculano de Carvalho, nos arrabaldes da cidade, ao lado de uma praça onde havia uma igreja, um mictório público que cheirava a mijo rançoso e um coreto antigo, tão lindo, que assistiu aos meus primeiros tremores alcoólicos, ficou na 37ª posição da lista.)
Rauschenberg
No Contraditório de sexta-feira, o Carlos Magno recomendou, com entusiasmo, a exposição do Rauschenberg em Serralves. Eu gosto do Carlos Magno, da análise política que faz, escuto-a com atenção, do amor que tem ao Porto, gosto até daquele jeito meio pedante de se achar amigo de toda a gente e de fazer citações brilhantes por tudo e por nada. Porém, tenho a sensação de que ele aprecia a arte contemporânea do Rauschenberg tanto quanto eu. A verdade é que se fosse uma exposição de bufas malcheirosas aprisionadas em frascos bojudos de vidro de um qualquer artista consagrado, o Carlos Magno também no-la recomendaria. O que releva para ele, e para muita gente, é a consagração, o reconhecimento dos pares, a validação da arte pelos prémios, pelas análises dos entendidos, pelas notas dos críticos. Eu percebo pouco de arte, mas apoquenta-me que haja quem goste de tudo o que nos dizem para gostar e contabilize idas a galerias e museus como quem cumpre uma obrigação. O que interessa, acho eu, é olharmos um determinado objecto, uma instalação, uma tela, uma peça qualquer, e sermos capazes de nos maravilhar sem saber sequer porquê, imunes à importância cultural da obra e do autor. Como quando se topa pela primeira vez com o azul do Klein. É só uma cor, uma só, mas que cor! E eu nem gosto de azul. Ou como quando se entra nas florestas e cidades labirínticas de aço do Richard Serra. A princípio, desdenhei, bufei mesmo, disse-lhe olha para esta merda gigante, mas tu já viste esta palhaçada, depois amainei e juro que escutei, nos bosques de aço, o eco das ninfas, fugindo da ira taurina da deusa Hera. A arte de papelão e desperdício do Rauschenberg não me diz nada. Nadinha. Não gosto. É um bocado pindérica. É. Acho deplorável que a obra dele conste do acervo que a NASA leva a passear pelo espaço, entre estrelinhas, luas e poeiras cósmicas.
2007/10/29
Paranhos
Às voltas com o processo de um agente da PSP, residente em Paranhos, dou conta de que gosto muito da toponímia do Porto. Paranhos, Cedofeita, Campanhã, Lordelo do Ouro, Massarelos, Miragaia, Nevogilde, Aldoar, Santo Ildefonso. Gosto da sonoridade do nome destes lugares. São nomes pagãos, rudes, primevos quase. Convocam tempos nevoentos, anteriores e incertos, planícies, montanhas e bosques habitados por outros povos. Os suevos. Os alanos. Os visigodos. Deve ser bom poder dizer “moro em Nevogilde” ou “trabalho em Massarelos”.
Página 161
" Lembrei-me agora de que podes responder de outra maneira ao teu professor se ele voltar a chatear-te." Vergílio Ferreira, Na tua face
(e quebro a corrente.)
(e quebro a corrente.)
2007/10/28
Badajoz
Sou uma pessoa invejosa. É, entre outros, um dos defeitos que tenho. Sou assim, atreita à cobiça, desde que me conheço. Já em miúda, de olhos chispantes, invejava os comentários que a Vitorina fazia às redacções da Ana Isabel e a fosforoscência cor-de-rosa dos sapatos de corda, comprados em Badajoz, que uma colega, a Rita, usava nos meses de verão. Já lá vão muitos anos. A última vez que tive noção de tão nefasta qualidade foi na passada sexta-feira quando anunciaram que o prémio Saramago fora, por unanimidade, atribuído ao Valter Hugo Mãe.
(para além de invejosa, sou também, como dizê-lo?, estupidamente pretensiosa.)
Obituário
Todos os anos é a mesma coisa. Mal chega o Outono, olho para os meus vasos, despidos, tristonhos, com uma ou outra hastezinha seca, moribunda, e rumo a uma estufa, solarenga e perfumada, em Porto Alto. Carrego sempre com os meus filhos, com as minhas mães e, por vezes, também com o meu pai, que, nestas coisas de botânica, como em muitas outras, é sempre uma voz sábia. Mal me vê, embeiçada, pelos vasos de azáleas, de begónias e de hibiscos franze o sobrolho e diz-me que as mesmas não sobreviverão aos meus cuidados. Sempre vivi rodeada de vasos em casa dos meus pais. Avencas, fetos, palmeiras, fetos, antúrios, patas de cavalo. Algumas delas existem desde que me conheço. Cresceram comigo. Como a avenca que agora vive em cima da máquina de lavar roupa, na marquise da cozinha. É a companheira da Madalena, quando a minha tia, ao fim da tarde, a senta em cima do tampo da máquina, com o nariz colado à janela, à espera de me ver chegar. Quis, por isso, trazer o verde para dentro das minhas paredes. Ingenuamente, pensei que, para além do jeito para a cozinha, também tinha herdado da minha mãe a habilidade para cuidar de plantas. Enganei-me. Tudo morre às minhas mãos. Até as plantas mais resistentes, como os cactos, sucumbem, definham. No entanto, apesar do historial negro, todos os anos, por esta altura, faço a mesma viagem. Atravesso a Recta do Cabo. Olho, de soslaio, para os escombros da Estalagem do Gado Bravo. Interrogo-me com a pequena igreja, só, abandonada, amarelecida, no meio da várzea. Chego ao outro lado. Atravesso a vila. Ignoro os inúmeros armazéns pré-fabricados de bugigangas chinesas que, perfilados à beira da estrada, anunciam, em cartazes gigantes, a barateza das inutilidades que têm para me oferecer. Por fim, chego à estufa. Os meninos correm pelos corredores à procura de um vaso pequenino, com uma planta pequenina, que ficará entregue aos seus cuidados. O João escolhe um cacto, cheio de flores vermelhas. A Madalena opta por um amor-perfeito de flores quadrilongas e roxas. Eu encho um carrinho de vasos, terra, fertilizantes, flores, plantas. Este ano escolho gerânios, sardinheiras, petúnias e rainúnculos. Pobres plantas, que, lá fora, enchem de cor a minha varanda. Mal sabem o que o futuro lhes reserva.
2007/10/25
Rosa (epílogo)
Rosa, se soubesses o cansaço que trago no corpo não me olhavas assim, não me chamavas senhor doutor, não me perguntavas pelo dia no hospital, não trazias os cafés queimados que me deixam gosto de cinza na boca. Sobretudo, Rosa, evitavas preencher a agenda até às 9 da noite. Varrias a mundana chatice que roça o traseiro pelas paredes dos meus dias. Livravas-me do miúdo das 8 horas, aquele quezilento, cheio de mimo, que veio cá há pouco tempo por causa de um furúnculo no braço. O que o miúdo gritou. Lembras-te? A mãe, uma baixinha com focinho de porco, a estupidez espalhada pelo rosto suíno, soluçava em voz baixa, como se o filho, um tiranete de sete anos, estivesse às portas da morte. Podias inventar-me uma doença, Rosa, qualquer coisa, talvez uma hiperplasia prostática. Tem um nome pomposo, eu sei, mas é um padecimento ligeiro, adequado aos homens da minha idade. O senhor doutor encontra-se doente, havias de explicar com cortesia profissional aos pais, não pode dar consultas nas próximas três semanas. E distribuías os miúdos pelos colegas do consultório. O miúdo do furúnculo podia ficar com o médico novo. Ainda deve ter paciência para aturar os rapazinhos que antecipam para a meninice a boçalidade macha da idade adulta. Se gostasses de mim, Rosa, pegavas-me na mão, levavas-me para tua casa, que cheira à alfazema dos pout-pourris que espalhas pelos móveis de pinho e pelas bancadas de moleano, abrias a cama, corrias os estores, ligavas o rádio naquela estação que passa tangos e canções antigas. Depois, deitavas-te ao meu lado e adormecíamos.
2007/10/24
2007/10/23
Peru
Aquele gentinha, as pretas, cantam bem, não cantam? gorgolejou uma mulher muito gorda, tilintando pulseiras e braceletes, aconchegando os foles de carne à cinta tubular, anafada como um peru de Natal. Referia-se ao coro que acompanhara a missa das sete. O João largou a minha mão, soprou na venta e revirou os olhos. Por instantes temi que sovasse, ali na saída da igreja, a mulher-peru. Ela soltaria glus aflitos. Penas pardacentas esvoaçariam pelo templo. Um odor de tripas inundaria as escadarias e colar-se-ia ao corpo do sacerdote e dos acólitos. Acabaria a mulher-peru depenada, aos pés da imagem Nossa Senhora de Fátima, boazinha, mas tão feiinha.
(Tenho tanto orgulho no meu filho.)
(Tenho tanto orgulho no meu filho.)
He Fengming (DocLisboa)
São três horas de um único plano, ininterrupto. Uma mulher velha conta a história da sua vida e do seu país. Chama-se He Fengming. Acusada de direitista na China de Mao, viu a vida destruída até ao tutano pelo regime comunista. Foi reabilitada apenas em 1979. Não é um documentário fácil de se ver. Há momentos em que nos apetece desistir. Não há folguedos nem alegria. É preciso abstrairmo-nos das imagens e procurar o frenesim nas palavras. O grande auditório da culturgest estava quase vazio, muitos desistiram a meio, quando He Fengming se calou restava meia dúzia de espectadores na sala. Ao meu lado, um homem aguentou, estóico, até ao fim. Durante três horas mexeu-se na cadeira, procurando uma posição que lhe aliviasse o aborrecimento. Deu gargalhadinhas inusitadas como que a querer mostrar que não estava a dormir, não senhor, nem pensar, estava ali, atento, condoído com a miséria dos outros povos. Bastava olhar-lhe para as horrorosas sandálias, para o cabelo desleixado, para a malinha a tiracolo, sentir-lhe o bafo etilicamente morno quando soltava as gargalhadinhas de bruxa, para perceber que é dos tais que acha que todo o mal do mundo tem origem dos Estados Unidos. Suponho que, com tais gargalhadas, quisesse mostrar que, apesar de esquerdista, também ele possuía lucidez democrática para criticar os horrores do regime chinês. Insuportável. À saída, tive de escoar a minha arrelia. Pisei-lhe os metatarsos. Ele urrou de dor. Pedi desculpa e lancei-lhe um encantador sorriso amarelo. Sou muito boa na arte de sorrir amareladamente. Sai furibunda com o mundo. Sobretudo, comigo. Sem paciência para frioleiras culturais. Acontece-me muitas vezes.
2007/10/22
2007/10/21
Molesquines
Tenho embirração, grande, aos molesquines e às máquinas de café de cápsula. Assim que um objecto passa a estar na moda eu passo a odiá-lo com todo o meu empenho. Também me acontece o mesmo com os escritores. Desejo muitas vezes que os livros que leio, e gosto, não se tornem sucessos de venda. No íntimo, bem lá no íntimo, quero que mais ninguém os leia. Só assim poderei manter a sensação de exclusividade, singularidade que desenvolvo com certo livro. É uma reacção muito feminina, a minha, misto de posse e ciúme.
2007/10/19
Almeria
Não há terra mais feia em Estanha do que a de Almeria. As estufas cobrem mais de 25 mil hectares. Estendem-se por planícies, invadem os vales, trepam as montanhas, roubam terras ao mar. Os peublos são feios, carrancudos e as lojas foram substituídas por bancos. As auto-estradas de Almeria nunca descansam, nem às horas mais tardias. É preciso escoar o produto. Os camionistas cruzam-se com cartazes gigantes que mostram mulheres loiras, mui guapas, comendo meloas rosadas que têm corações de doçura. Nos cruzamentos de Almeria, cachos de homens magrebinos esperam que alguém lhes ofereça um dia de trabalho. Em Almeria vive o pastor mais triste do mundo. Os pimentos de Almeria são verdes, amarelos, vermelhos e laranja. Os tomates são repolhudos, excessivos, fazem lembrar os frades gulosos das histórias antigas. As tulipas e as coroas imperiais crescem em carreirinhos ordenados, tão lindas, orvalhadas de pesticidas e insecticidas. Almeria era uma terra muito pobre. Agora é uma terra rica em escravos.
2007/10/18
Formol
Quer que use a bigorna ou o martelo de aço? O homem fala-me com cortesia. Escolho o martelo e coloco as mãos sobre uma mesa que cheira a formol. Com golpes certeiros, infalíveis, parte-me as falanges, as falanginhas e as falangetas. Não dou pela dor. Estou morta há tanto tempo. Hão-de estar moídos os ossos das minhas mãos, penso, finalmente enforquei os dedos, estão quinados, mortinhos da silva, não há recuperação possível, acabou-se, por fim, o descanso. Agradeço-lhe o serviço e pergunto se também arranca globos oculares. Claro, tenho até um alicate especial que veio da Coreia e que é perfeito para esse tipo de trabalhos. É só marcar na agenda com a minha recepcionista!, e atira com as luvas de látex para dentro de um recipiente asséptico.
2007/10/17
Escafandro
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amem! disse Maria da Conceição e aspergiu-se abundantemente com água benta. Percorreu o corredor lateral. Uma mulher nova rezava em frente de São Domingos. Aos seus pés, um renque de flores artificiais ornamentava o altar do santo com uma paz de cemitério. Sentou-se na nave principal e pousou o missal no regaço não sem antes lançar um novo olhar à desconhecida que continuava a bichanar palavras de fé ao monge mendicante de pés descalços. Respirou fundo. Sentia-se bem dentro da igreja. Era como se Deus, pelas vidraças, lançasse mãos cheias de uma poeira brilhante que se transformava em consolo, paz e silêncio. Maria da Conceição gostava de passar ali o início da tarde, dormitando perto do Senhor Deus que nunca lhe falara, mas que a escutava sem azedume ou aborrecimento. Deixou-se estar. Um raio morno aqueceu-lhe o corpo, afagando-lhe o ventre e o rosto. Maria da Conceição fechou os olhos. Adormeceu. Sonhou com um castelo, propriedade de um gigante de cabeleira hirsuta e carranca embrutecida que fazia lembrar o rosto rude e provinciano do cura que celebrava a missa das oito. A cozinha do castelo estava atafulhada de açafates de vime cheios de duchesses, azevias e tarteletes fofas de doce de abóbora. O gigante do sonho fê-la acordar com um estremecimento. Olhou em redor e pareceu-lhe ver numa pilastra mais recuada uma sombra alta e ameaçadora. Os gigantes saltam muitas vezes dos sonhos para os locais adormecidos do mundo. Com a mão limpou um fio de baba que lhe escorria pela boca. Levantou-se. Antes de voltar a casa passaria pela pastelaria e pediria um bolo. Não um bolo seco, mas um desses bolos com creme que se comem com um garfinho e se acomodam em caixinhas de papel coloridas. À saída procurou um derradeiro conforto apalpando a madeira maciça das portadas. Passou as mãos nodosas pela madeira e, ao olhá-las, reparou nas veias saídas, nos sinais que a idade deixara como marcas cruéis na sua pele de velha. Olhou para a praça onde um grupo de raparigas mal vestidas montava uma banca. Uma delas aproximou-se e perguntou-lhe se não queria contribuir para Rede2000, uma organização finlandesa empenhada na erradicação da pobreza no mundo. O nosso país tem mais de dois milhões de pessoas que vivem numa situação de pobreza extrema, explicava a rapariga, tal traduz uma injustiça e constitui uma ofensa à dignidade pessoal e um desrespeito pelos direitos humanos. Espectáculos de luzes, concertos, acções de rua, tudo se faria para lembrar os que nada têm, continuava a rapariga mostrando um sorriso metálico e monstruoso. Maria da Conceição não sentia pena dos milhões de pobres que inundavam o mundo com a sua miséria e desalento. Sentia, isso sim, pena daquela rapariga que nunca experimentara na pele os raios de sol que entravam pelas vidraças da igreja e que envolviam o corpo como um escafandro morno de luz. Enfiou o missal bolso do casaco e soltou uma moeda de cinquenta cêntimos no regaço do homem que pedia na porta da igreja. Este, deixou de coçar os testículos e, sorrindo, lançou-lhe um hálito fétido de vinho barato.
2007/10/15
Supermodernizar
Entro na livraria do costume. Descubro que o Urbano Tavares Rodrigues tem um romance chamado Eterno Efémero. É um título bonito. Folheio-o. Às tantas, numa página qualquer, uma surpresa. Endereços electrónicos. Primeiro, a descrição de uma troca de mails entre desconhecidos. Depois, conta-se um encontro marcado no Picoas Plaza. Cerro imediatamente o rosto. Franzo-me. Torço o nariz. Não gosto disto. Demasiado concreto. Demasiado banal. Demasiado desinteressante. A temática poderia ser abordada, certamente já foi, pela corja de novos escritores merdosos que por aí se publica. Volto a colocá-lo no escaparate. Utilizando a terminologia buarquiana, que fica sempre bem, direi: Urbano, ouve o que te digo, nem toda a gente tem capacidade de se supermodernizar. Às vezes, quase sempre, são patéticos os velhos que, como tu, insistem em se supermodernizar. (Essa moça tá decidida a se supermodernizar/ Ela só samba escondida que é para ninguém reparar./ Faço-lhe um concerto de flauta e não lhe desperto emoção./ Ela quer ver o astronauta descer na televisão.)
Mariana
Sete saias tem Mariana
e um emprego em Miraflores
viveu ontem de recados
mas hoje vive de amores.
Ssete carros vão chegando
pelas tardes de Belém
com sete homens que a beijam
entre Sintra e o Cacém.
Não tenho amores
nem tenho amantes pois
quantos amados não sei
tenho alguns amadores
olha para mim
lá na terra onde morei
escutavapela rádio o folhetim.
Sete saias tem Mariana
à noite no Parque Mayer
dança bolero em dó menor
ali num cantinho qualquer.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros, 1978
e um emprego em Miraflores
viveu ontem de recados
mas hoje vive de amores.
Ssete carros vão chegando
pelas tardes de Belém
com sete homens que a beijam
entre Sintra e o Cacém.
Não tenho amores
nem tenho amantes pois
quantos amados não sei
tenho alguns amadores
olha para mim
lá na terra onde morei
escutavapela rádio o folhetim.
Sete saias tem Mariana
à noite no Parque Mayer
dança bolero em dó menor
ali num cantinho qualquer.
Fausto, Madrugada dos Trapeiros, 1978
Marco António
Haviam de explicar ao Marco António que um político deve apresentar-se sempre bem escanhoado. Nunca, mesmo que seja num congresso do PSD, com uma barba rala de três dias. Os gaienses podem gostar do estilo moderno-desmazelado, mas o resto do país aprecia o escanhoamento perfeito, sinal de decência e asseio. Eu, mal o vi, imaginei-o a tresandar a perfume, mas com os pés e o prepúcio mal lavados.
2007/10/14
Xarope (4)
Agora, passados tantos anos, sou eu que preparo o xarope de cerveja preta e laranja para os meus filhos. Imito os gestos da minha mãe. Mal os oiço tossir, corro à despensa, à procura de uma cerveja. Depois, entretenho-me a fingir que sou uma mãe experiente, cheia de sabedoria, preparada para enfrentar, nem que seja com mezinhas e remédios caseiros, qualquer achaque dos filhos. Todavia, apesar de meu empenho, os matraquilhos pequenos, antes de o provarem, desatam aos gritos, a fugir por todas as divisões da casa, apavorados, renitentes em provar aquele remédio, de cor preta, de consistência e cheiro duvidoso. Nem sabem o que perdem. Por isso, é por culpa deles, única e exclusivamente deles, que, tal como acontecia na minha casa materna, acabo por ser eu a beber a totalidade do dito remédio. Pego na tacinha, ignoro o facto de estar sã da cabeça aos pés e bebo o precioso líquido. Todinho. Até ao fim. Glu, glu, glu. Já está.
Xarope (3)
Mas, voltando à personagem principal deste texto, o xarope de cerveja preta, era suposto bebermos uma colher daquele milagroso líquido de quatro em quatro horas. Ou de cinco em cinco horas. Ou de seis em seis. Já não sei. Acontece que eu, vítima do vício da gula, adorava o sabor daquele xarope. Não lhe resistia. Cada vez que me apanhava sozinha na cozinha, longe dos olhares recriminadores da minha mãe e da tia Dé, à sorrelfa, engolia uma colher do dito xarope. Às vezes, engolia duas. Outras ainda, três. Era tão sequiosa daquele líquido que, muitas vezes, ignorando as regras da boa educação, alarvemente, bebia o xarope da tacinha. Emborcava-o, directamente, da taça de vidro. O certo é que, quando, antes de nos deitarmos, a minha mãe ia à cozinha buscar o remédio para nos tratar as maleitas, encontrava, quase sempre, a tacinha vazia. Quando a via assim, esvaziada, olhava-me com aqueles olhos de menina que Deus lhe deu e, sem falar, dizia-me "É mesmo tontinha, a minha filha".
Xarope (2)
A minha mãe vertia o xarope para dentro de uma tacinha de vidro. Deixava-o arrefecer em cima da bancada de mármore da cozinha, entre a batedeira, a picadora, o copo misturador, o um, dois, três. Ali ficava o líquido castanho escuro, quase preto, perdido no meio da panóplia infernal dos ajudantes de cozinha da minha mãe. Os pequenos electrodomésticos domésticos são a perdição da minha mãe. É uma espécie de vício, que ela não consegue controlar. Tem tudo. Já teve tudo. Iogurteira, faca eléctrica, abridor de latas eléctrico, máquina para fazer sumos, máquina para fazer batidos, torradeiras, tostadeiras, fritadeiras, grelhadores, micro-ondas com mil e uma funções, máquinas de café. Sei lá que mais. Até de Goa ela os traz. Há dois anos, veio carregada com uma maquineta enorme que é o seu maior orgulho. Quando a trouxe, perante o nosso espanto, apressou-se a explicar. " Ó filhas, é que esta máquina não existe em Portugal. Serve para fazer as massalas". Nós desatámos às gargalhadas. Como se as massalas, essas misteriosas combinações de especiarias, de cheiros intensos e paladares surpreendentes, que ela costuma fazer, não pudessem continuar a ser feitos no copo misturador da Moulinex. A tal maquineta passou a ocupar o meio da bancada da cozinha. Destronou, assim, de uma forma injusta, a velha e cansada batedeira que, durante tantos anos, incansavelmente, a ajudou na preparação dos bolos, das tartes, das tortas, das mousses, dos gelados, das bavaroises.
Xarope (1)
Mal dava por mim, combalida, a dar uma tossidela mais profunda, um cof-cof-cof prolongado, corria a pedir à minha mãe que o fizesse. Ela acedia. Começava por lavar muito bem uma laranja. Com um garfo ou uma faca, perfurava-a em vários sítios. Depois de estropiado, colocava o fruto dentro de um tacho pequeno. Adicionava-lhe de seguida uma cerveja preta e várias colheres de açúcar. Levava aquela mistela ao lume. Deixava, depois, o preparado ferver durante longos minutos até que ganhasse a consistência de um caramelo líquido. E, assim, em pouco tempo, estava pronto o xarope caseiro. O tal que nos aliviaria das tosses cavernosas, da expectoração incomodativa, interminável, que nos enchia os pulmões, os brônquios, os bronquíolos, a traqueia e todos os restantes órgãos do sistema respiratório de um muco esverdeado e pegajoso.
2007/10/11
Anjuna
Viu passar-me no corredor. Disse-me qualquer coisa em mandarim. Depois em cantonês. Arregalou os olhos. Eu sorri. Exigi-lhe que traduzisse o que acabara de me dizer. Disse que não podia. Insisti. “Hoje está especialmente bonita. Se pudesse salvava-a desta cidade e fugia consigo para Goa, para a praia de Anjuna”. Eu dei uma gargalhada tolinha. Reparei, então, no Sr. Saraiva que, do biombo da secretaria, me espreitava as pernas. São infindáveis as maravilhas que uma saia travada preta e uns sapatos de salto alto clássicos fazem pela estima de uma mulher. Andei eu a fazer terapia durante um ano. Com o dinheiro que lá gastei podia ter comprado um guarda-roupa decente e resolvido o que em mim há a resolver.
Ornitorrinco
Or-ni-to-rrin-co. A menina leu a placa sibilando a palavra com calma. Depois esmagou o nariz contra as placas de plástico transparente que delimitavam a jaula. Era um bicho estranho, aquele. Tinha um bico como os patos, uns pés que se assemelhavam a barbatanas, o corpo coberto de pelos grossos e um rabo rectangular e achatado. E, lera a menina na placa, punha ovos como qualquer ave! Um bicho que era e não era. A menina ficou a olhar, durante algum tempo, para o ornitorrinco que, parado em cima de uma pedra, parecia alheio à estranheza que provocava nos que o observavam. Sabia o bicho que não tinha o privilégio da simplicidade. Os visitantes que o olhavam sentiam-se, muitas vezes, incomodados. Ou se é pássaro. Ou se é mamífero. Ou se é peixe. Não se pode é ser um bocadinho de tudo. Nem se pode ignorar a primordial importância das classificações, das divisões em espécies, grupos, géneros, segundo características pré determinadas. A menina repetiu o nome baixinho. Ornitorrinco, ornitorrinco, ornitorrinco. Era uma palavra difícil de repetir. Dizia-a e sentia a boca encher-se de pedras. Olhou em redor e não viu nenhuma cara conhecida. Procurou os colegas. Estavam já longe. A menina correu a juntar-se ao seu grupo. A professora deu-lhe a mão e censurou-lhe o atraso com um olhar brando. Depois continuou. E aqui estão os furões, as doninhas, as lontras e os texugos e as toupeiras.
(o Menezes é parecido com um furão, o Ângelo Correia com um texugo, o Eurico de Melo é uma toupeira, velha e cega.)
(o Menezes é parecido com um furão, o Ângelo Correia com um texugo, o Eurico de Melo é uma toupeira, velha e cega.)
2007/10/09
Cemitério
Não é legítimo comparar os tipos que, em Agosto, invadiram um milheiral com os que, agora, vandalizaram o cemitério judeu. Os activistas que invadiram o tal campo de milho são só imbecis. Já os outros, sendo imbecis, são também perigosos. Querer meter tudo no mesmo saco, como fazem alguns, é inaceitável.
Intimidade
Fui ao TNDM ver “A Minha Mulher”. A Mila gabara-me o texto, do José Maria Vieira Mendes, dizendo que lhe fazia lembrar Tchekhov. A Mila, a minha querida Mila, pode dizer estas coisas porque foi a mais bela Elena Andreevna que esta cidade conheceu. A mim, pobre coitada que só fiz de velha numa peça muito chata do Graham Greene, fez-me lembrar um filme do Woody Allen. Não digo qual.
Galinhas
Há muitos anos que vou sozinha ao cinema e ao teatro. E gosto. As companhias interrompem o sossego. Estragam tudo. Uma pessoa sai do lusco-fusco da sala, de olhitos piscos, e leva logo com uma bateria de perguntas parvas. As companhias, em regra, dão muitas gargalhadinhas. Parecem galinhas cacarejando furiosamente. Têm necessidade de acabar com a ficção. Querem a realidade de volta. Custa-lhes o silêncio. Eu gosto do silêncio.
Cidade Proibida
Comprei o livro do Eduardo Pitta. O ambiente gay-chique, de engates no Lux e compras na Avenida da Liberdade, dá-me arrepios na espinha. Não gosto do Rupert, nem do Martim, nem tampouco do Vasco. Não gosto, confesso, do livro. Tenho pena. Gostava de gostar de o ler. Não sei bem porquê. Ficou-me só a vertigem erótica, brusca, que, por vezes, o romance transpira. (Não percebo a razão pela qual, na tábua de personagens, só as homossexuais e bissexuais têm direito a ser caracterizadas com base na sua orientação sexual. Cheira-me a discriminação.)
2007/10/08
Goa
Ela: O avô é indiano!
Ele: Não é nada!
Ela: É, é!
Ele: Não, sua parva! Ele já me explicou que é burguês.
Deixo de esfregar o tabuleiro e viro-me. Burguês? Só depois percebo que burguês é parecido com goês. Bem feito para o meu pai que insiste que ser goês é diferente de ser indiano. Goa, para ele, e para muitos, é um reduto de civilidade católica no meio da bárbara Índia. Não sei se é assim. O sistema de castas, odioso e insustentável, entrelaça também a sociedade goesa. Brâmanes, Chardós, Shudras. Uma talagarça de desprezo mútuo cobrindo tudo. Na boca do neto, o meu pai não é indiano. Nem sequer goês. É burguês. Não corrijo o João. Meto os Kaiser Chiefs a gritar no leitor de cds e damos início ao campeonato de atirar comida à boca. Atiramos pedaços de pão ou de fruta ao ar e tentamos apanhá-los com a boca. Eles ficam impressionados com a minha pontaria. A Madalena é deliciosamente batoteira. O João não. O chão da cozinha acaba repleto de quadradinhos de pêra e metades de morangos.
Ele: Não é nada!
Ela: É, é!
Ele: Não, sua parva! Ele já me explicou que é burguês.
Deixo de esfregar o tabuleiro e viro-me. Burguês? Só depois percebo que burguês é parecido com goês. Bem feito para o meu pai que insiste que ser goês é diferente de ser indiano. Goa, para ele, e para muitos, é um reduto de civilidade católica no meio da bárbara Índia. Não sei se é assim. O sistema de castas, odioso e insustentável, entrelaça também a sociedade goesa. Brâmanes, Chardós, Shudras. Uma talagarça de desprezo mútuo cobrindo tudo. Na boca do neto, o meu pai não é indiano. Nem sequer goês. É burguês. Não corrijo o João. Meto os Kaiser Chiefs a gritar no leitor de cds e damos início ao campeonato de atirar comida à boca. Atiramos pedaços de pão ou de fruta ao ar e tentamos apanhá-los com a boca. Eles ficam impressionados com a minha pontaria. A Madalena é deliciosamente batoteira. O João não. O chão da cozinha acaba repleto de quadradinhos de pêra e metades de morangos.
2007/10/07
Insónia
Não sei como aconteceu. Tal nunca me tinha acontecido. Senti o carro bater em qualquer coisa. Num corpo, talvez. Uma espécie de gemido entrou pelas frestas do vidro e segredou-me qualquer coisa ao ouvido. Fiquei à espera. Quando saí do carro percebi que havia uma poça de sangue no alcatrão. O sangue era espesso. Imaginei-o de uma mornidão confortável. Olhei em redor e para cima. Os prédios dormiam sossegados e o vento da madrugada restolhava nas árvores feias do bairro. Olhei em redor e não vi ninguém. Voltei para casa e adormeci. Dormi como há muito não dormia. Não sonhei com caminhos de poeira. Nem com compotas de amoras. Nem com o corpo que ficou na estrada de Sacavém.
2007/10/06
Wittgenstein
Não me tenho em grande consideração. Tal deve-se, em parte, ao facto de ser frígida. Ser frígida é como ser maneta ou perneta. Um aborrecimento. Por muito que uma pessoa encare com normalidade a deficiência que tem, sente sempre que lhe falta qualquer coisa. Todavia, há momentos em que a minha estima se descontrola e galopa, num trote desenfreado, estrada acima. Como, por exemplo, quando faço um bóbó de camarão decente, quando corro dez quilómetros ou quando percebo que não sei, nem quero saber, quem foi o Wittgenstein.
Deus
Ainda não percebi se o meu filho acredita em Deus. Ter um pai crente e uma mãe descrente, que disfarça, sem habilidade, a ausência de fé, não ajuda a assentar ideias sobre o assunto. Ando a ganhar coragem para chegar perto dele e, de chofre, como se fosse a coisa mais natural do mundo, lhe perguntar se acredita em Deus. Não sei que resposta me dará. Mas sei a pergunta que me fará (e tu, mãe? acreditas?).
2007/10/04
Gardel
Algerozes, peanha, sótão, Chelas, leques, charola, Benfica, rio, silêncio, bruma, gelosia, pagela, viço, discjoquei, bailis, canja, nardos, plátanos, faias, olmos, loendros, limoeiro, terrina, copos, cristal, Cláudia, Graça, Álvaro, Nuno, Cristiana.
(Os livros, os que interessam, sangram como gente. São farpas que se enterram na carne.)
(Os livros, os que interessam, sangram como gente. São farpas que se enterram na carne.)
Pontuação
Não sou capaz de utilizar pontos de exclamação. Cada vez que escrevo uma frase e a faço terminar num ponto de exclamação, fico a olhar para ela. Ela também me olha. Muitas vezes, penso “Se esta frase terminar num ponto de exclamação nunca poderá ser dita por mim”. Por isso, quase sempre, acabo por substituir o ponto de exclamação pelo ponto final. De vez em quando, releio o texto e, em determinada frase, arrisco utilizar, de novo, o ponto de exclamação. Esta batalha entre pontos - o final e o de exclamação - dura, por vezes, muito tempo. Quase sempre sai vitorioso o ponto final que, triunfante, retira toda a emoção que determinada frase poderia ou quereria transmitir.
Há, no entanto, quem use e abuse do ponto de exclamação. As pessoas querem mostrar vidas cheias de emoções, boas e más, e por isso usam e abusam do ponto de exclamação. Mas quantas destas pessoas não terão vidas desinteressantes tal qual a minha? Há até quem utilize mais do que um ponto de exclamação na mesma frase. Isso enerva-me tanto! (agora tinha mesmo de utilizar um ponto de exclamação. É que não me enerva muito. Enerva-me muitíssimo). Para exprimir surpresa, excitação, seja lá o que for, basta utilizar um ponto de exclamação. Quando leio uma frase que termina numa sequência, por vezes, interminável, de pontos de exclamação, penso logo em gente histérica, a quem, se pudesse, administraria doses cavalares de sedativos e tranquilizantes. Ou, então, esbofetearia até sangrarem o entusiasmo pelas fissuras da pele. Se eu fosse um ponto, um sinal, seria, definitivamente, as reticências. Tal como as reticências nas frases, também eu estou sempre a marcar uma interrupção na vida, sem coragem para lhe completar o sentido.
2007/10/03
Nojo
Uma colega perguntou-me, há tempos, se conhecia um bom dentista para miúdos. Dei-lhe indicação do médico que trata da boca dos meus filhos. Ela marcou uma consulta para a filha de cinco anos. Hoje, em conversa, perto da máquina dos cafés, já não sei a que propósito, voltei a gabar o médico. Avisei-a que não lhe estranhasse os modos, era um homem muito feminino, uma borboleta delicada, com infinita paciência para as lamechices das criancinhas. A minha colega quase que se engasgou com o capucino de fingimento que a máquina lhe depositara nas mãos. Perguntou-me se o médico era homossexual. Expliquei-lhe que não sabia, mas que já o encontrara no teatro duas vezes com um homem que parecia ser o seu companheiro. A minha colega soltou um espontâneo “ai, que nojo!”, depois disse que ia desmarcar a consulta. Tive pena da minha colega. Deve ser profundamente triste ser-se assim.
Eduardo Sá
Nunca poria os meus filhos nas mãos de um psicólogo que usa um penteado patético para esconder a careca.
2007/10/01
Hana-bi
Mamã, o que é uma vagina?, pergunta de rajada, sem me olhar, enquanto traga com sofreguidão os pedaços que farinheira que encontra no prato de cozido. É um outro nome que se dá ao pipi das mulheres, digo-lhe, consciente do ridículo da minha resposta. Enfio uma colher de sopa de espinafres na boca da estrela da tarde. Que sorri, maravilhada, ao ouvir a palavra pipi. Ele dá uma gargalhada. Daquelas que só ele sabe dar. Uma gargalhada que parece fogo de artifício a rebentar. Da boca, saem-lhe fogos de benguela, petardos e foguetes. Que nome tão estúpido!, diz, cansado de tanto rir. Eu, mãe e mulher, consciente do valor primordial da vagina, defensora da superioridade vaginal, riposto. Digo-lhe que pénis é um nome tão estúpido como vagina. Confiante, continuo a alimentar a estrela da tarde. Ele parece não me ouvir. Continua interessado no prato de cozido. Já comeu toda a farinheira. Dedica-se, agora, a procurar os pedaços de chouriço. Olha-me com olhos de desafio. Por fim, pergunta-me o que é um pénis.
(Era tão querido quando era pequenino. Agora, está à beira de se tornar num adolescente imbecil.)
(Era tão querido quando era pequenino. Agora, está à beira de se tornar num adolescente imbecil.)
Menezes
Há uma arrogância muito grande na elite social-democrata que agora vaticina o descalabro do PSD. No Luis Filipe Menezes vêem um monstro populista. Nos seus apoiantes uma matilha esfaimada prestes a enterrar o dente no primeiro naco de carne que encontrarem. Nas bases, que elegeram democraticamente um líder, uns tolos ignorantes e dementes. A coisa não andará muito longe da verdade. É certo. Porém, o que não se suporta é que os que agora apregoam loas ao Marques Mendes sejam os mesmos que nunca o apoiaram abertamente. Concederam-lhe o apoio como quem dá uma esmola. Trataram-no com displicência, como um mal menor. Petulantes, convenceram-se de que bastaria um pequeno esforço, uma pequena indicação, um breve sinal, para que o povo laranja, obediente, reelegesse o candidato por eles escolhido. Enganaram-se. Bem-feito.
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