2010/02/25

Orlando Zapata Tamayo

Morreu um operário, pobre e preto, como lembrou ontem certo analista de política internacional. Enquanto morria, depois de dias de agonia, o corpo minguando, minguando, transformado num espectro, numa arma sem préstimo, em poeira, poalha, em nada, outro operário, de barbas, moderadamente rude, é o que convém aos operários modernos e respeitáveis, confraternizava com os seus algozes. Em silêncio. Que as palavras são bens escassos. Devem poupar-se. O mundo é dos cobardes.

Angústia

Apanhei um táxi para a rua do Quelhas. O motorista cheirava a corpo mal lavado. Trazia a roupa muito usada. O suor de muitos dias entranhado nas fibras de poliester. O cabelo comprido, oleoso, com crostas grossas. Cheirava a miséria, a corredores sombrios, a quartos alugados ao mês, cheirava a ninhos de baratas, a ratos cegos e pelados correndo nas entranhas do prédio em ruínas. Cheirava a noites de solidão. Cheirava a dias de solidão. As noites de solidão são medonhas. Mas são toleráveis. Piores, muito piores, são os dias de solidão. Lembrei-me de um conto que li, há alguns dias, de Tchecov.

(Também gosto das Variações Golberg. Gosto mais das Tocatas.)

2010/02/23

Alegre

Já aqui contei. Nas últimas presidenciais, estive tentada a votar no Manuel Alegre. Por causa das canções do Adriano Correia de Oliveira. Gosto tanto deles que, certa vez, num hipermercado, mergulhei num caixote onde estavam cds em promoção. Aborreceu-me ver ali o Adriano Correia de Oliveira e o Manuel Alegre no meio de tão medíocre companhia. Trouxe os sete cds que lá estavam. Há quem resgate cães e gatos e pretinhos. Coitadinhos. Resgato cds. Votaria no Manuel Alegre apenas por gratidão. É um motivo tão bom como outro qualquer. Só que, certa noite, abri o televisor e, ao lado dele, estava o Pedro Abrunhosa, dando-lhe o seu apoio. Deu-me uma sulipampa. Fiquei par ali deitada no chão, tremendo pernas e braços, revirando os olhos. Não consigo votar na mesma pessoa em que o Pedro Abrunhosa vota. E não votei.

Nobre

Fiquei contente com a anunciada candidatura do Fernando Nobre. Não sei o que o homem pensa sobre a maioria dos assuntos, mas isso, nos dias que correm, pouco interessa. Depois, li num jornal qualquer, que a Margarida Pinto Correia vai ser a coordenadora da sua campanha. Perdi o entusiasmo. Não tarda nada tem a Bárbara Guimarães a apoiá-lo.

2010/02/21

Sangue

Fiquei parada a olhar o coelho em cima da bancada da cozinha. O corpo vinha ainda ensanguentado e estava encolhido como se fosse um feto dentro da barriga da mãe. Mas o que mais impressionava era a cabeça. Parecia a cabeça de um menino morto. E tinha olhos escuros como os dos meus filhos. Coloquei o bicho por baixo da torneira e chamei o R. Corta-lhe a cabeça. Não sou capaz de o arranjar se ele estiver a olhar para mim. E estendi-lhe um cutelo. Desviei o olhar. Escutei o ruído da faca e o baque da cabeça caindo no caixote do lixo. Voltei a ficar sozinha. Enfiei as mãos nas entranhas e senti o coração, o fígado. Arranquei vários pedaços de gordura esbranquiçada. Piquei alhos, ervas. Reguei-o com vinho tinto. Esfreguei-lhe o corpo com sal. Deixei-o em cima da bancada, aninhado numa travessa de vidro, coberto com papel de alumínio. Já lavei muitas vezes as mãos. Ainda cheiram a alhos, vinho e sangue.

2010/02/20

Alessandra Sanguinetti




Torta de Cenoura

Fui ao celeiro comprar uns comprimidos para emagrecer. A fome fez-me comprar uma fatia de torta de cenoura que se atravessou no meu caminho. Eu bem tentei olhar apenas para os escaparates dos suplementos que tudo tratam, das cápsulas que amenizam qualquer achaque, dos complexos vitamínicos que solucionam todos os padecimentos. Entretenho-me muitas vezes a deambular pelo corredor dos suplementos. Descansa-me saber que, da obstipação à incontinência, da calvície à frigidez, do excesso de peso à fadiga, há sempre uma solução fácil para os nossos problemas. Mas, sei lá como, os meus olhos desviaram-se para a triste ilha dos pastéis de algas, dos pães de arroz, dos croquetes de soja. Lá estava, no meio daqueles pitéus, a tal fatia de torta de cenoura. Sabe deus que, de todos os bolos que existem, nenhum me desperta mais a gula do que os que são feitos com cenoura. Os bolos, as tortas, os sonhos de cenoura ganham uma cor, uma textura, um paladar único. Já na rua, os comprimidos para emagrecer enfiados no bolso do sobretudo, antes de trincar a fatia de torta (gosto de comer enquanto ando), pus-me a ler a lista dos ingredientes: cenoura, canela, geleia de milho, farinha tipo 65, coco. Tal como desconfiava, nem uma pitada de açúcar. Nem uma colherzinha. Nem sequer uns salpicos de açúcar mascavado. Insultei, de imediato, a comida macrobiótica, os gurus da comida saudável, os fundamentalistas que desejam viver até aos cem anos uma vida insuportavelmente sã e regrada, enfardando feijoadas de seitan e lasanhas de tofu. Lembrei-me, então, de uma colega do banco, reformada já há muito tempo, a Albertina. Era um amor de pessoa, gentil e generosa, muito delicada e amável. Fotografava muito bem. Tinha um marido mais novo que era professor universitário. Amava-o com muita serenidade. Um dia a Albertina trouxe o filho ao banco e a secretária da direcção ofereceu ao menino um pacotinho de pastilhas de chocolate. A Albertina agradeceu a oferta, muito gentil, e explicou que os seus filhos não comiam doces, nem rebuçados, nem caramelos, nem chocolates, nem pastilhas. Rematou, dizendo que os miúdos nunca comiam dessas coisas e, por isso, rejeitavam o sabor enjoativo, excessivo dessas gulodices. Quando me contaram a história, imaginei o menino já com as mãos no ar, o gesto de aceitação interrompido, fixando os olhos na secretária e no pacotinho de pastilhas de chocolate, escutando a explicação da mãe. Achei aquilo tudo triste… Tão triste. Uma criança que não conhecia o sabor do chocolate. Lembrei-me, pois, da Albertina e do seu filho, que cresceu comendo gelatinas azuis de ágar-ágar e boiões de sobremesas de soja, quando meti a fatia de torta de cenoura à boca. Foi então que, ali, no meio da rua mais feia de cidade, onde vive um cristo muito alto e loiro e as árvores se enchem de flores cor de arando, se assistiu a um fenómeno estranho. Pelos poros da minha pele escaparam-se opiniões antigas e certezas inabaláveis. Primeiro fiquei oca como um cabaça. Depois fui mirrando, mirrando. Até que desapareci.

(A torta, a puta da torta, era excepcionalmente boa.)

2010/02/14

Ornatos Violeta Dia Mau

(tenho outro blogue.)

2010/02/11

Bocadinho

- Vamos encontrar a Maria e a Ana.
- Quem são?
- São amigas da mãe.
- Têm filhos da minha idade?
- Não.
- São casadas?
- Não.
- São solteiras?
- Não.
- Então?
- São namoradas.
- Está bem.
(silêncio)
- Faz-te confusão?
- Só um bocadinho.

(Prefiro partilhar as gracinhas da minha prole a falar do que se passa neste país e, na televisão, o Lobo Xavier, o António Costa e o Pacheco Pereira falam, falam, falam.)

Mandela


2010/02/08

Maria Adelaide

Aconselhou-se com a mãe. Não tinha mais ninguém a quem recorrer. A mãe escutou-a na vivenda de azulejos cor de caramelo. Explicou-lhe com inesperada clareza a natureza instrumental do casamento: era apenas um meio para se alcançar um fim. Maria Adelaide encontrou certo conforto no conselho. Chegou-se ao marido e disse-lhe que podia suportar o resto desde que tivessem um filho. Foi mãe aos vinte e nove anos. A menina que nasceu era muito bonita. Maria Adelaide rejubilou. Achou que a beleza da filha vingava o seu passado de permanente gozo: o lábio leporino à nascença, a mãe assim como era, a gargalhada do primo Renato no quarto das bonecas, o despeito das primas, o marido olhando imagens de homens nus. As primas, Arlete e Gorete, estranhavam a extraordinária beleza da menina. Não percebiam como podia a Laidinha ter tido uma menina tão linda. Mais parecia filha da Broke Sheilds. Descobriu-se, pouco depois, que a menina sofria de atrasos graves. Mal falava e babava-se muito. As primas voltaram a visitá-la e a consolá-la. Conseguiam suportar a beleza da filha agora que a sabiam tolinha. Deus voltava a gozá-la. Pela quarta vez.

(bocadinho do tal conto.)

2010/02/07

Mulheres

Vi a Ana Free de vestidinho, muito elegante, rapando um frio medonho, para ficar bonita na fotografia ao lado de Sua Excelência. Vi também a Catarina Portas sorrindo, linda, entre mulheres. Aparentemente só lá estava um homem. Sua Excelência quis honrar as mulheres. Ena. E sorriu para os fotógrafos. Depois imaginei a Bárbara Guimarães terricando umas trouxas de ovos com sabayon de amêndoa ou, quem sabe, um creme brullé de tangerina ou, talvez, um crocante de pêra bebada, enquanto Sua Excelência esgatanhava num jornalista que tem cara de doninha. O mundo está cheio de gente absolutamente magnifica.

2010/02/04

PJ Harvey - Good Fortune

Isabela

Há dias, a mana aconselhou-me o blogue da Isabela Figueiredo. Carreguei o cenho e, com petulância, expliquei-lhe que não lia blogues. Depois, no dia a seguir, parecia provocação, enquanto esperava a hora de saída da minha filha, escutei a entrevista que a autora do tal blogue dava ao Carlos Vaz Marques. A sua voz entrou-me pelo corpo todo. Escutei-a falar de um país e de um tempo que ainda foi meu. O colonialismo era o meu pai, explicava ela. Não vou ler o blogue da Isabela Figeuiredo, que uma mulher deve manter-se fiel às suas manias e idiossincrasias, mas vou ler, sei-o, com sofreguidão, o livro que escreveu.

Variações Goldberg

Li um livro da Iris Murdoch. Dava o corpo, vendia a alma ao diabo, cortava uma mão, assistia a vários programas de entrevistas da Bárbara Guimarães, rapava o cabelo, fazia o que fosse preciso, para escrever assim. Logo de seguida li um livro da Ana Teresa Pereira. Pensava que existia apenas uma Mafalda Ivo Cruz na literatura portuguesa. Afinal há duas. E calo-me, estrangulo os dedinhos, por consideração a quem aprecia escritores que gostam de descrever ambientes atafulhados de aprumo intelectual, onde se fode ao som das variações goldberg. Criada nos arrabaldes, reconheço, sou uma pobre criatura iletrada, boçal e suburbana. Os escritores assim dão-me náuseas. Prefiro, de longe, a MRP (nunca lhe li nenhum livro, mas prefiro.)

Tarantela

Estava ali no largo D. Estefânia, trincando uma madalena da Tarantela e lembrando os entardeceres da minha infância. Ao fim do dia, vasculhava a mala da tia Dé. A mala reflectia a tristeza e a solidão da vida que levava. O conteúdo estava sempre impecavelmente organizado. Reduzia-se a meia dúzia de objectos. Uma carteira de fole, plastificada, para guardar os documentos. Um porta-moedas. Uma caixa de guardar comprimidos, muito pequenina, incrustada com uns cristaizinhos coloridos. Uma escova de cabelo. Um corta unhas. Pouco mais. Revirava a mala da minha tia e não encontrava papéis soltos ou caixas de chicletes vazias. Não havia lenços de papel amarrotados, nem batons velhos. Nem sequer o passe social ali se perdia. Estava sempre enfiado na bolsinha lateral, seguro pelo fecho eclair. O espaço daquela mala pequena, em função da organização, do cuidado meticuloso, era imenso e sobrava para qualquer coisa que não chegava. Espreitava a mala da minha tia e não me dava conta do vazio da sua vida. A insistência com que falava do Dr. Lucas, o cirurgião de São José, que tinha um filho deficiente, não me mostrava o amor que lhe tinha. Esse amor que não chegava. Nunca se cumpriu. Mais triste do que amar um homem que não nos quer é amar um cobarde que nos quer, mas não luta para nos ter. Porém, naqueles tempos, pouco me importava a angústia e o amor não cumprido da minha tia. Revirava-lhe a mala com um propósito definido. Muito concreto e interesseiro. Ela trazia, quase sempre, qualquer coisa que comprava no caminho do hospital: tabletes da regina, sombrinhas de chocolate, bolos de arroz, palmiers e madalenas. Eram os bolos e os chocolates que eu procurava na sua mala.

Estava ali no largo, tão feliz, comendo uma madalena da Tarantela, lembrando tudo isto, confortada com o amor que tenho à minha tia, quando encontrei uma amiga que não via há muito tempo. Deixei de lhe falar. Já não sei porquê. Perguntou-me pelos filhos. Respondi-lhe evasivamente. Trocámos meia dúzia de palavras. Esforcei-me para lhe sorrir. Foi então, assim do nada, de uma forma extraordinária e directa, que ela disse que me achava egoísta. E sorriu, com um misto de desdém e piedade. És profundamente egoísta, disse-me. No preciso instante em que as palavras lhe saíram da boca, um pardal, que dava saltinhos, na balaustrada de uma varanda, estremeceu. Ficou tão aflito que largou um piar manso de pássaro pequenino. O rapaz da banca de jornais, que não tinha dentes, espreitou por cima das revistas da vida social a ver se aquela conversa descambava numa discussão decente que lhe alegrasse o dia mortiço. Por breves momentos, pensei esbofetear a minha amiga. Ou afogá-la na água esverdeada do lago que fica no meio do largo. Ou esfregar-lhe a madalena no rosto. Não fiz nada. Percebi que não me aborrecia o facto de me chamar egoísta – sou - mas apenas o atrevimento e a coragem de o fazer.